Todo mundo já sentiu o peso de uma exclusão (na verdade, em muitas ocasiões é uma sorte). A sensação, desagradável para muitos, de não se sentir querido, bem vindo ou amado. Os Beatles, que eram muito sensíveis, já tinham percebido o problema lá pelos idos de 65 quando começaram a compor várias músicas que fazem menção à solidão humana, e até criaram um grupo imaginário, alter ego psicodélico de si próprios, chamado Sgt Peppers lonely hearts club band, " a banda dos corações solitários do Sgt. Pimenta". Nota-se com isso, bem como nas letras de músicas como Nowhere man e Eleanor rigby, uma intenção de abrigar, auxiliar, estender a mão, incluir, ou seja, ser solidário com o solitário.
Transitando pela vida, posso dizer que os tipos humanos mais interessantes que encontrei não foram em meio às massas, ou nos círculos de sucesso, mas justamente nos "acostamentos das rodovias", às margens e longe das vitrines.
Quem já viajou para a Índia sabe da capacidade que o indiano tem de incluir, seja aceitando um saddhu canibal, ou colocando vinte pessoas onde só cabem duas ou três e ainda assim permanecendo de bom humor. O Indiano talvez seja o povo que mais tem capacidade de conviver com as diferenças entre pessoas ( mesmo que às vezes olhem para os gringos como se fossem ets. ), pelo menos eles conseguem exercer essa habilidade entre eles mesmos.
De certa forma podemos dizer que a tolerância também é grande com os animais, sejam os macacos gangsters que vivem do saque, sejam as sagradas vacas vira-latas.
Talvez por se sentirem bem vindas, ou por receberem muita tolerância (mas mais provavelmente ainda pelo fato de não sofrerem a ameaça constante de virar bife), as vacas estão por toda parte e no caminho de quem quer que seja, sempre dóceis e receptivas ao toque humano, constantemente procurando comida, comendo os restos de feira, revirando pilhas de lixo ou mesmo comendo cartazes afixados nos muros.
Quando chegamos na Índia, nós e as crianças nos deliciamos com a possibilidade de poder acariciar as vacas, que não fugiam à nossa aproximação. E algumas vezes colocávamos nossa pequenina ou o neném sobre o lombo de alguma.
Com o tempo, e à medida em que o verão se aproximava e as pessoas começavam a frequentar mais a praia do Ganga, víamos constantemente uma cena deveras hilária. Uma vaca branca baixinha e com barriga muito gorda, como se estivesse grávida, abordava os banhistas e frequentadores, provavelmente em busca de comida, e as pessoas saiam levantando rápido e desajeitadamente, para não terem suas cangas pisoteadas e suas bolsas fuçadas.
Cada hora ela ia na direção de uma pessoa ou grupo diferente, e as reações eram quase sempre as mesmas: projéteis de areia ou banhos de água mineral, tapas e gritos para afugentá-la. Ficávamos olhando de longe aquela cena e morrendo de rir, e acabamos por chamá-la de "vaca pentelha".
Um dia resolvemos guardar as cascas de fruta para a pobre e desprezada vaca, e quando a avistamos, vindo em nossa direção, ficamos contentes com a oportunidade de sermos gentis com ela. Qual foi nossa surpresa, quando ela ignorou a comida e encostou em nosso corpo, e tal qual um gigantesco, rotundo e desajeitado felino, começou a esfregar o pescoço como quem pede carinho. Ficamos então durante alguns instantes acariciando-a, a família toda, e a partir desse momento, ela não se separou mais da gente. A vaca estava necessitada de outro alimento, o carinho e atenção.
Parece até exagero, ou imaginação, mas a verdade é que se tornou um ritual, e como tal, tinha o aspecto da repetição em vários detalhes: chegávamos sempre na praia, depois do almoço, quando não tinha nenhuma aula, e algumas horas depois, quando o sol descia um pouco no céu, avistávamos ela, andando vagarosamente, em seu ritmo cadenciado, vindo em nossa direção, e para espanto nosso e geral, não parava mais para importunar ninguém. Não tinha mais sentido, afinal, a vaca pentelha não precisava mais mendigar as migalhas de amor do próximo, pois agora ela tinha seu próprio bando, seu grupo, seu lugar ao sol. E como a vaca pentelha assumiu o lugar de um animalzinho de estimação, ficava deitada ao sol em frente ao nosso "acampamento", ao alcance do carinho das crianças. Incrível, pois ela só faltava virar as patas para cima como um cão.Adotamos a vaca pentelha, que ninguém queria por perto e com ela tivemos incríveis tardes na prainha do ganga, aceitando-a como um amigo incompreendido, com suas dificuldades, com sua inseparável baba elástica que tantas vezes nos sujou as roupas e até meu rosto uma vez. Com sua língua e lambidas ásperas e meladas, só Deus sabe do que. E sentimos hoje uma grande saudade de seu jeito bonachão e seu carinho desajeitado. E como lembrança, trouxemos o seu colar com um sininho velho e enferrujado para as crianças brincarem e lembrarem sempre da vaca excluída e da grande lição sobre incluir os outros.
Moral da história: "Quando derdes uma festim, não convideis seus parentes e amigos, que podem lhe retribuir, mas convideis os pobres e estropiados, que não tem como lhe pagar" (Jesus). Mas assim mesmo, a vaca pentelha nos retribuiu com muita amizade .
obs: Infelizmente ficamos sem câmera no final da viagem e não temos as fotos da mimosa se esfregando e até recebendo massagem, feita por nossos pés (padaghata) em suas costas.