Quem já leu o estupendo clássico "Os miseráveis" de Victor Hugo há de se recordar da triste história de Jean Valjean, um homem bom, mas marcado pelo sofrimento e por uma injustiça, que após anos na prisão e depois de ser acolhido por um padre, acaba por ter uma recaída e roubar a casa paroquial no meio da noite e fugir. Ao ser preso e em seguida levado pelos policiais a ter com o padre, o mesmo diz à polícia que dera a prataria ao fugitivo, e acrescenta que Valjean esquecera de levar os castiçais valiosíssimos. O pároco coloca os castiçais na matula do assaltante e dispensa os policiais. Com esse ato de perdão incondicional e altruísmo, o vigário desarmou totalmente Jean Valjean, dando-lhe uma nova chance de obter a liberdade e ainda restituindo -lhe a fé no ser humano.
A despeito da admiração por esse episódio (que é fruto da imaginação do escritor), e sem negar que obviamente houveram boas pessoas em dois mil anos de história do catolicismo, devo dizer que sempre fui completamente implicante com a religião católica. Sempre tive urticária de entrar em igrejas e asco de pensar na forma como os homens que dirigiram esta religião se apropriaram dos ensinamentos de Jesus (que admiro incondicionalmente) e erigiram uma instituição hipócrita, dominadora e inescrupulosa que assombrou o mundo por séculos com seus desmandos, tiranias e crimes.
Já tinha essa implicância quando era criança - muito antes das aulas de história medieval exaltarem esse sentimento - preferindo bem mais as sessões de um centro de umbanda que meus pais frequentavam naquela época. Os atabaques, as danças e as roupas, além obviamente da imensa natureza à volta do local, faziam muito mais sentido para mim, do que aquele sotaque de gringo forçado dos padres (é obrigatório falar daquele jeito para se ordenar na igreja?), além daquelas estéreis repetições mecânicas dos sacramentos. Achava, já naquele tempo - na incapacidade de adolescente de julgar de forma "desapaixonada" - que era uma religião vazia de sentimento, uma religiosidade de etiqueta, na qual muitas pessoas diziam que eram católicas, mas aquilo não fazia absolutamente nenhum sentido prático na vida delas e, principalmente, que aqueles ensinamentos de Jesus não lhes pareciam aplicáveis na vida cotidiana. Não virei umbandista, embora tenha continuado amando a natureza, a música e a cultura da África, mas a rejeição ao catolicismo permanece, apesar de me considerar cristão.
A vida sempre nos dá oportunidades de rever conceitos e aliviar da frieza ou crueldade a nossa opinião nos julgamentos. Nunca achei que todos os padres são ruins, nunca mesmo, mas sempre tive uma certa reserva com eles, ou até mesmo desconfiança. Mas nessa viagem tive a oportunidade de travar contato com um padre sensacional. Logo na Índia fui ter a oportunidade de rever meus conceitos a respeito dos padres. Maluco isso não?
A experiência do meu irmão em isolamento e sobrevivência na montanha me fez atinar para o fato de que com as crianças ainda no Brasil, eu também tinha possibilidades de testar a minha própria tenacidade após alguns anos de conforto acumulado e saber se esse couro velho ainda aguenta umas lambadas, quer dizer, se ainda podia me virar com pouco ou nada. Resolvi então passar uns dias na Índia como um "sem posses", não chegando a dormir na rua, pois isso é difícil considerando a imundície daquele país, mas passando um curto período sem usar dinheiro nenhum. Duas coisas serviram-me de inspiração: uma foi o desejo de saber se eu ainda tinha tenacidade suficiente para viajar sem grana, de carona, passando perrengue - durante alguns anos, quando era artesão, tive a oportunidade de vivenciar esse tipo de vida, viajando como andarilho, ou de carona, subindo em caminhão de leite, carroça, carreta, carro de boi, como desse para viajar. Outra inspiração óbvia foi reler antes de viajar "on the road" (pé na estrada), de Kerouac, que sempre inflaciona meus instintos temerários de viajante.
Tinha mesmo de ir ao encontro de meu irmão, pois tinha combinado com ele quando me enviou uma mensagem. Vi então que essa seria uma ótima chance de colocar o plano em prática. Fui ao seu encontro com a proposta firme de desconsiderar a possibilidade de usar dinheiro, viajando de "general class", junto ao povão, sem pagar, entrando em vagões de carga, caminhando pelos trilhos, como nos livros do Jack london. Após um curto período em Monkey hill junto a meu irmão, tivemos que dormir um dia em Lonavla, a fim de pegar o trem no outro dia rumo à Mumbai. Nem tinha levado dinheiro, para não correr perigo de ceder à tentação de ser frouxo e correr para um hotel. Dormir na estação de trem, na Índia, também não era algo que me dava nenhum estímulo. Foi quando meu irmão me falou: "Vamos dormir na igreja, o Padre é gente boa"....O Damião tinha dormido lá duas vezes, pois a igreja era quase ao lado da estação e é dificílimo pegar o trem que pára na estação mais próxima de monkey hill.
Na estação de Lonavla passa apenas um trem por dia, que fica parado na estação durante cinco minutos e que depois pára próximo da estação de Monkey Hill por uns vinte segundos. Tecnicamente não existe essa estação, pois é apenas um posto de verificação de freios no meio do nada (vide a postagem "estação monkey hill"). O trem freia, e ao parar já começa a andar quase que imediatamente. Em tese você nem pode descer nesse lugar, pois não há nada. Quando o fiscal percebe que você vai descer ou subir nessa rápida parada, logo grita e tenta te impedir. Além do mais, é quase uma odisséia sair do vagão com um milhão de pessoas, nesse pouco tempo e pular. Esse trem é basicamente quase todo de vagões general class e, por esse motivo, fica lotado de indianos viajando de graça, de forma que só não vai gente no teto. Você não pode comprar uma passagem para esse lugar, pois tecnicamente não existe. Se não souber o horário do trem específico, o número e o nome, também não vai descobrir, pois na estação de Pune e na de Lonavla, ninguém sabe te dizer nada a respeito. Meu irmão sabia os dias e horários desse trem pois tinha ficado amigo do funcionário da estação de verificação. O moço sempre ficava sozinho, então adorava as poucas vezes em que Damião passava por lá para ter alguém para conversar, oferecer um chai e água. Além do mais, meu irmão deixava sua mochila guardada com ele.
Em duas situações em que meu irmão precisou pernoitar perto da estação de Lonavla - pois tinha recebido informações desencontradas sobre o horário do trem e ainda não tinha os horários - ele ficou nessa igreja católica, sob o auxílio do padre, pois assim poderia conferir todas as possibilidades e descobrir o trem certo.
Juro que estranhei, pois nos tempos de artesão, quando ficava sem dinheiro nenhum em alguma cidadezinha, nunca pude contar com a bondade ou boa vontade de algum padre. Nem mesmo tolerância para dormir na porta ou dentro da área do terreno da igreja. Mas na falta de outra perspectiva, já que precisava ir para Mumbai, resolvi rumar para a igreja com meu irmão, conformado no pensamento de que "ajoelhou tem que rezar".
Durante o caminho especulava sobre a opinião do padre, agora acolhendo duas pessoas ao invés de uma. Provavelmente acharia um absurdo ou abuso, sendo a casa paroquial um lugar de oração e não um hotel para vagabundos. Eu achava que só poderia ser essa a sua concepção.
Chegando lá, esperamos a missa acabar. Nós dois exauridos de cansaço e ainda sujos de andar horas no mato, na porta de uma igreja na Índia, vendo aquela cena surreal de senhoras de sari, com roupas tipicamente indianas, saindo da igreja. Quando tudo acabou, o Padre chegou até a porta e nos viu. Cumprimentou meu irmão, provavelmente já adivinhando a respeito de suas intenções, e se aproximou para conversar. Meu irmão explicou tudo para o padre com aquele seu inglês macarrônico e eu, preocupado dele não aceitar, intercedi atropelando a conversa dizendo que dormiríamos no jardim, que não queríamos dar problema. Estava muito cansado com toda aquela "aventura", e tinha chegado à conclusão de que estava ficando velho para essas coisas, então fui logo me metendo na conversa com medo do padre não deixar. Mas ele sorriu bondosamente e recusou minha proposta dizendo que eles tinham um quarto de hóspedes com banheiro na parte de trás da igreja, que meu irmão mesmo já tinha dormido nele. Não acreditei quando ele disse isso, pois no calor da confusão (e bota calor nisso), tinha esquecido de perguntar para meu irmão em que condições ele dormia na igreja, pois para mim era óbvio que só poderia ser na porta ou coisa parecida. O Padre nos levou para um quarto fresco e limpo, com ventilador, duas camas, um banheiro do lado, e pasmem, nos deu ainda - insistindo para que aceitássemos - um bolo de nozes que uma devota tinha lhe dado. Dentro de nossas perspectivas, aquele quarto limpo e aconchegante, me pareceu naquele momento mais confortável do que o do ótimo hotel em que tinha me hospedado em Londres.
Tivemos uma noite reconfortante depois de dias cansativos e, no dia seguinte, fiquei de conversa com o simpático padre a respeito do problema que estava ocorrendo na Índia, onde hindus fanáticos e ignorantes já tinham queimado vivos quatro padres católicos. Questionei-o se ele sendo indiano não via de alguma forma uma explicação para isso na lei de causa e efeito, já que no passado a igreja tinha procedido dessa mesma forma, e se não tinha medo de atitudes extremas como essa, sendo também padre. Tranquilamente ele me disse que o dever dele era se preocupar com os assuntos da paróquia e promover o bem, afastando assim qualquer medo. Achei fantástico, simples e eficaz. Um padre verdadeiramente cristão em plena Índia hindu. Nunca vou esquecer o semblante e o olhar bondoso desse padre indiano, e não me perdôo por ter esquecido seu nome (o cabeça de banana do meu irmão nunca perguntou). Fomos embora da Igreja com o coração leve, e pegamos o trem correto em direção a Mumbai.
Colocamos um ponto final nessas idéias de viajar sem eira e nem beira, pois tinha que pegar o dinheiro, as coisas e atravessar o país, em direção ao norte, sem perder tempo. Minha mulher e as crianças chegariam em uma semana e eu precisava ir para Rishikesh alugar uma casa para a gente morar.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
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