quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O enfeite do presépio

Vinho tinto e rosado
Bacalhau ensopado
Figos secos, castanhas, rabanadas, avelãs
E um pinheiro enfeitado
Com bolotas brilhantes
E cordões prateados
Os presentes pelo chão
E algodão imitando a neve branca e real
Meia-noite de natal
Os sorrisos explodem
As champagnes explodem
As pessoas se abraçam com seus braços de algodão
Todo mundo cantando, os presentes se abrindo
É momento de grande, grande realização
Meia-noite instantânea , muita boa vontade
Nesta noite de natal
Já chegou Papai Noel
Oh yeah

A letra desse irônico rock do Som Imaginário (grupo que acompanhava Milton Nascimento no comeco dos 70), descreve tudo que gostaria de expôr a respeito da artificialidade do natal.

Qual é o real significado desta festividade?

Não é extremamente hipócrita que seja ainda considerada como uma festa cristã?

O que há de cristianismo no natal? O presépio ?

Se observarmos as raízes do culto cristão, ou o que a história convencionou chamar de cristianismo primitivo, poderemos observar que inicialmente existia um núcleo de conhecimentos, provavelmente oriundos de Jesus e passados adiante pelos seus discípulos através da tradição oral. Jesus não fundou uma igreja, tampouco uma seita ou religião. Não ordenou monges ou sarcedotes, apenas usou seu tempo fazendo o bem e falando de amor universal, perdão incondicional, a importância da verdade e de se evitar a hipocrisia no trato com o divino.

Não precisa ser nenhum gênio para perceber o quão engenhosa e inventiva foi a igreja católica para conseguir criar uma mega estrutura burocrática e poderosa, a partir das singelas e profundas parábolas de Jesus.

O aspecto mais nefasto dessa história é que no inconsciente coletivo, Jesus e seus ensinamentos, os apóstolos e seus atos, viraram sinônimo de igreja católica. A imagem de Jesus ficou incondicionalmente relacionada à igreja, que dele se "apropriou", ou então ficou vinculada ao protestantismo e às mil seitas que surgiram nos tempos atuais.

Essa "aliança" forçada criou o inconveniente de produzir entre as "camadas pensantes" da sociedade um repúdio geral à imagem e até aos ensinamentos de Jesus. Quer dizer, como a igreja passou dois milênios tentando dissociar a fé, o espírito religioso do pensamento e da ciência, no momento em que o conhecimento humano começou a realmente se desenvolver - a partir do renascimento e especialmente depois da revolução francesa e revolução industrial - a religiosidade, espiritualidade ou qualquer sentimento relacionado ao sagrado ou divino foram excluídos do desenvolvimento do pensamento científico e filosófico.

Durante dois milênios a igreja tomou a frente dos rumos do mundo ocidental e se arvorou a explicar do seu jeito todas as questões da vida e do universo, combatendo ferrenhamente todo tipo de ciência, doutrina, filosofia ou teorias, ignorando a contribuição que outras formas de pensamento poderiam trazer à evolução da civilização ocidental.

Quando a ciência começou a se desenvolver e encontrar explicações diferentes para os mistérios da vida, houve um inevitável divórcio entre a ciência e a religião. Coisa impossível de acontecer na Índia, onde a razão nunca foi colocada de lado, fornecendo bases filosóficas ao sentimento religioso. Quando digo isso, obviamente me refiro ao sentido gnosiológico do hinduísmo, e não aos aspectos mais populares do culto.

Noto que não é apenas nos meios científicos ou intelectuais, mas também no meio do Yoga há um grande repúdio à figura de Jesus. Creio que isto é culpa da mancha indelével que a igreja católica deixou em sua imagem e nas manipulações e interpretações errôneas de seu pensamento. Se buscarmos a essência dos ensinamentos do homem santo e, principalmente compreendermos que as igrejas, católicas ou protestantes, não possuem direitos ou exclusividade sobre Jesus, ou seja, não são donas de sua herança (isso principalmente, pois não representam em absoluto sua mensagem), poderemos então "aceitar" Jesus simplesmente como mais um grandioso mestre espiritual, incorporando em nossas vidas seus principais ensinamentos e até mesmo os já tão manipulados evangelhos oficiais, como shastras ou escrituras de conhecimento, desde que através do bom senso, seja feita uma triagem do que é coerente e do que não é, do que foi manipulado ao longo da história e do que representa os ensinos reais de Jesus. "Separar o
joio do trigo".

A respeito dessas manipulações e desse sentimento de posse, me lembro de outra irônica canção do Marcos Valle que diz assim: "Jesus meu rei, fazendo lei, peçam que faça e ele faz". Quer dizer, Jesus sempre foi um fantoche nas mãos dos pastores e padres, que "falavam por ele" expondo "seus desejos" e "vontades", fazendo assim a lei que quisessem.

Eu ia escrever sobre isso no natal passado, quando estava em Rishikesh, mas fiquei com preguiça de ir até uma lan-house. Naquele natal, fomos convidados por amigos nepaleses para fazer uma ceia natalina. Eles mesmos nem ligam para isso, são de famílias budistas e essa festa não representa nada para eles (assim como para nós), mas achamos muito bacana a atitude deles de fechar o restaurante, bancar um jantar, comprar presentes e confraternizar. Fiz uma feijoada vegetariana (pois insistiram que deveria ser um prato brasileiro) e eles amaram. Compraram whisky no mercado negro de Rishikesh, trouxeram tambores (acabou indo toda a comunidade nepalesa da cidade) e foi um festival de danças típicas e histórias das vilas do Nepal, com todo mundo brincando e dançando como crianças. Um ótimo prenúncio de viagem, pois iríamos para lá logo depois. Esse foi certamente o natal mais legal e diferente que tivemos na vida, com o acréscimo da benção de não ver pelas ruas a decoração baranga típica de natal. Espero ter ainda muitos natais nepaleses ou indianos.

A despeito de tudo isso e de minha repulsa pelo comercialismo do natal, fizemos nesse ano uma árvore para nossa pequenina. Ela adora papai noel e outras firulas natalinas. Sentamos todo mundo com material de arte, tesouras, papéis, isopor, tintas, canetinhas, pincéis e fizemos todos os enfeites de forma artesanal, evitando assim contribuir ainda mais com a indústria do natal. A ceia, como em todos os outros anos em que estamos juntos, não teve nenhum daqueles pratos típicos dos quais não gostamos. Os presentes não teve jeito, tivemos que comprar mesmo. E fizemos as pegadas de cinzas do papai noel saindo da lareira e indo em direção à árvore. Por causa das crianças fizemos concessões que só podem ser feitas dentro do "espírito natalino".

Nota: não temos fotos da festa nepalesa-natalina pois no dia seguinte, um rapaz indiano que pediu para olhar nossa câmera, futucou vários botões e acabou apagando mais de trezentas fotos da viagem, deixando como lembrança natalina apenas uma, a dele mesmo que ele fez questão de tirar segurando a câmera apontada para si mesma. Quis deixar essa foto como recordação cômica, mas minha filha mais velha achou o cúmulo e apagou.


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Um trem errado para um destino certo

Tem coisas que só os indianos fazem por você. Tudo bem que sou implicante, intolerante e talvez petulante, mas qualquer pessoa que já foi à Índia sabe que não exagero quando digo que não pode existir na terra um povo mais obtuso e sem noção para dar informações a respeito de qualquer coisa, do que os indianos. Nem o mineiro, um cidadão classicamente desorientado, consegue competir, pois os caras não sabem mesmo te dizer onde fica o próprio umbigo. Para piorar a situação, seja por gentileza, segundo crêem os bondosos, seja por vontade de sacanear os "westerns", eles parecem não saber pronunciar as palavras : "não sei onde fica", ou simplesmente "não sei", e resolvem sempre te dar uma informação, independente de saberem ou não sobre o que estão falando e sem pensar nas consequências desse ato. Mas o fato é que quase sempre, com raríssimas exceções, se você perguntar para um indiano uma informação sobre como ir a algum lugar, ele vai te dar a dica ou a direção errada.

Seja qual for a intenção dos indianos naquele dia, o fato é que eles "atiraram no que viram, mas acertaram no que não viram", pois com suas repetidas informações erradas, tão iguais que pareciam combinadas, acabaram nos mandando para um de nossos mais venturosos destinos nessa viagem à Índia.


Estávamos ainda cansados das nossas andanças pelas montanhas e das correrias para subir e descer nos trens lotados, e mesmo com uma noite boa de sono num hotel em Mumbai ( bom, já está explicado, pois não pode haver satisfação e humor que resistam àquela cidade ), até o pacato Damião estava com o estopim curto. Após três tentativas frustradas de receber a atenção da funcionária do guichê da estação ferroviária, que estava mais preocupada em comer o seu "chicken masala", ele se "empombou" e disse-lhe que ela não estava fazendo nenhum favor especial em atendê-lo, que era o serviço dela e ele estava pagando o ticket, logo ele precisava que ela fizesse o seu serviço e lhe desse uma informação segura. A mulher irritou-se e deu-lhe a passagem finalmente dizendo qual era o número da plataforma onde pegar o trem.

Não havia mais tempo para questionar a respeito da falta de números e informações no bilhete, estava no horário do trem sair, e a funcionária do guichê tinha dito e reafirmado que era aquele mesmo, então era melhor colocar "sebo nas canelas". Corremos para o trem e encontramos o vagão que coincidia com o único número escrito em nosso estranho bilhete.


Já na porta perguntamos a um senhor com "ar" de mais esclarecido, se falava inglês e ao ouvi-lo confirmar, perguntamos se aquele trem ia mesmo para Haridwar, cidade mais próxima de Rishikesh, nosso destino final, e diante de sua resposta afirmativa entramos no vagão.


Desconfiado por já conhecer a famosa desorientação indiana, falei ao meu irmão que tentasse perguntar para mais umas duas pessoas se realmente aquele era o trem. Fiz minha parte e perguntei a um casal se aquele era o trem que ia para Haridwar, e eles questionaram em hindi a um senhor sentado ao lado, e todos eles confirmaram que o destino final era Amritsar, mas que o trem parava em Haridwar, situada no caminho. Consultamos o guia de trens e horários que tínhamos comprado na estação, o mesmo que os indianos usam, e não conseguíamos ver lógica no trajeto. Para piorar, a numeração do trem era muito louca, e o nome da cidade de destino escrito no trem era Amritsar mesmo, mas não dava para confirmar se parava em Haridwar. Embora as duas cidades não fossem tão longe assim, parecia que eram doze horas de viagem de uma cidade para a outra. Com o guia na mão, resolvi andar até o outro vagão, para não ser indelicado com as pessoas que tinham nos dado informações, demonstrando desconfiança. No outro vagão, parei um rapaz da companhia que servia lanches, e lhe questionei, mostrando o mapa das linhas de trem da Índia, se aquele era realmente o trem que ia para Haridwar, e se era, porque eu não encontrava aquela linha e horário no guia. Ele me disse secamente que aquela era uma linha nova, que constava em outro guia, de outra rede ferroviária, e questionado por mim a respeito dessa informação, disse que tinha certeza do que dizia.


Diante de tamanha demonstração de segurança do funcionário, e mesmo com nossa tradicional desconfiança mineira, resolvemos deixar de cismar. O trem estava cheio de figuras diferentes, personagens típicos da Índia que até então não tínhamos tido oportunidade de ver na já tão ocidentalizada Mumbai, e seria melhor aproveitar a viagem, observar os homens com roupas de renunciantes, as figuras com indumentária de sadhu, alguns muçulmanos vestidos à caráter, todos aparentemente tão curiosos em relação à gente quanto nós em relação a eles.

Amritsar era uma das cidades que tinha muita vontade de conhecer. Terra natal do querido amigo sr. Narinda, sikh radicado em nossa cidade há 15 anos e uma figura muito especial.


A cidade se situa muito próxima da fronteira do Paquistão, sendo assim, mesmo sem querer, assimilou bastante coisa do vizinho.


A religião sikh sempre foi meu objeto de interesse, por ser completamente diferente de outras formas religiosas na Índia, uma religião que de certa forma assimilou elementos do hinduísmo e islamismo, mas que porém adquiriu sua própria expressão, de cunho monoteísta e fraternal. Pregam a igualdade entre os homens e rejeitam o sistema de castas.


A partir da quarta ou quinta parada, começaram a subir no trem alguns sikhs, e eu fiquei intrigado com um senhor com indumentária de "guerreiro" ou de guarda que sentou no banco abaixo de nós, com duas espadas embainhadas, um punhal, e alguns dos símbolos da religião sobre o turbante. Fiquei tentado a descobrir o motivo específico da roupa, mas na dúvida e no receio de uma má recepção à pergunta (apesar dos indianos sempre serem receptivos ao diálogo) preferi ficar como voyeur, espionando o senhor, observando seus atos, estudando e comparando com os outros indianos. Analisava cada ação deste senhor, pois não dava para ver a paisagem de onde estava, e sendo assim, não tinha mais nada para fazer a não ser ler o enfadonho e careta Lonely planet. Percebi que ele foi o único a lavar as mãos - usando água do seu cantil, despejando pela janela do trem - e comia de uma forma muito comedida e meticulosa, sem se lambuzar como os outros. Também foi a única pessoa que não conversava, parecia taciturno, mas mais que isso, passava uma imagem, uma "aura" de sabedoria, ou pelo menos de tranquilidade adquirida através da experiência de vida. Não conversava com ninguém, mas não parecia ser por se sentir melhor que os outros, mas simplesmente por não se interessar pela conversa corriqueira, aparentemente banal, dos outros passageiros.






Observava o homem olhando pela janela e ficava imaginando o que se passava pela sua mente. Como deve ser pensar da forma de outra pessoa, tão diferente de nós? Como deve ser o desenvolvimento do pensamento de um senhor sikh? Certamente o pensamento daquele homem deveria ser diferente do único outro sikh que eu conhecia, o sr. Narinda, um dócil e pacato comerciante de gemas, pedras semi-preciosas e artigos asiáticos. Pensava que talvez sua visão alcançasse a paisagem lá fora e, reconhecendo lugares familiares, talvez comparasse com a Índia de sua infância e mocidade, tão diferente da atual.



Refleti que talvez toda essa minha especulação sobre os pensamentos do senhor fossem uma grande bobagem, e ele estivesse apenas pensando em qualquer coisa, mas com uma expressão séria que acabava lhe conferindo uma imagem de sábio e comedido. Mas ainda intrigado com sua figura, fiquei observando por mais tempo. Esperando o melhor momento para tirar algumas fotos sem ele ver, morrendo de medo das espadas, pois vai saber que tipo de louco podemos encontrar.


No meio do caminho, resolvi conferir mais uma vez, com alguns senhores sikhs que estavam embarcando numa parada, a respeito do destino e do trajeto do trem, e um deles me garantiu que este trem não passava por Haridwar. Chamando um gerente da estação que estava próximo, conferiu com ele e os dois me garantiram que realmente não passava, e que eu deveria descer em (não me lembro o nome da cidade), se quisesse pegar um outro trem para Haridwar, pois esse era o ponto mais próximo em que o trem passaria. Fiquei furioso (implodindo por dentro) com os indianos, comigo mesmo de ter confiado e com a mulher da estação, que se vingou de ter sido cobrada pelo meu irmão. Aquela regra de ouro de não brigar com o garçom que serve sua comida, para evitar represálias, também servia para os atendentes de guichê de tickets.

Tinha de pensar numa solução rápida, pois eu só tinha uns poucos dias para chegar em Rishikesh, arrumar uma casa e voltar para Mumbai para receber a Cris e as crianças. Amaldiçoei a resolução de primeiro estudar no sul para depois ir para o norte. Se nossa passagem de ida e volta era por lá, era melhor ter deixado as aulas no sul para o final da viagem - pensei aborrecido. Mas a programação dos cursos conferia perfeita com o período em que eu estaria sozinho na Índia e, além disso, pensava que o calor estaria muito insuportável no final da viagem, fato que confirmei ser correto quando voltei ao sul para ir embora. Marinheiros de primeira viagem que éramos, achei que seria necessário, em consideração às crianças, ter esse cuidado de conferir cuidadosamente a cidade em que passaríamos mais tempo, lugares para habitar, comer ,etc, então resolvi ir até Rishikesh e voltar depois para buscar a Cris. Que loucura essa idéia, e que odisséia cansativa que havia se originado a partir dela, especialmente agora estando no trem errado. Mas todas as possibilidades já tinham sido estudadas anteriormente e realmente essa era a única solução mais viável. Só tínhamos esquecido de um fator, bem preponderante: "no meio do caminho tinham uns indianos, tinham uns indianos no meio do caminho"


Com a cabeça cheia de especulações sobre como proceder, desci na estação da cidade que correspondia a bifurcação da linha para conferir rapidamente se havia outro trem no mesmo dia, pois se fosse para dormir numa "cidade muquifo", preferia tentar a sorte em Amritsar mesmo. O trem parava de um lado da estação, mas descobri que o guichê que eu precisava ficava do outro lado das linhas, e tinha que pegar uma passarela entupida de gente e caixotes. Só tinha uns quinze minutos para toda a operação, então resolvi deixar meu irmão com as coisas no trem e correr como um doido atravessando pelos trilhos mesmo, pois seria a única opção.


Jamais imaginei o quão largas pareceriam aquelas três pistas de trem que me separavam da plataforma. Uma jornada por uma vastidão apocalíptica com oceanos de cocô e urina humana, misturado com lixo, ratos, moscas e grandes poças de óleo escorregadio.


Tínhamos andado a pé por trilhos de trem, em regiões entre cidades, onde não são exatamente limpos, mas nada se compara a imundície das estações, pois é quando a grande maioria dos passageiros vão ao banheiro, e onde todo mundo joga tudo que se tem de lixo dentro do trem pela janela, direto na vala dos trilhos.


Recitei mentalmente o salmo 23, aquele que diz algo mais ou menos como : "ainda que eu ande pelo vale das sombra e da morte", e encarei a tarefa de atravessar. Quando cheguei à plataforma do outro lado, encontrei o de sempre: filas e mais filas com gente furando por todos os lados e aquela desoladora paisagem humana com mil informações erradas para me dar e encrencar ainda mais minha vida.


Tentei inutilmente de todas as formas me aproximar de um guichê para tentar descobrir quando era o próximo trem, mas não havia jeito. Quando me toquei do horário, tinham se passado uns treze minutos ou mais. Aterrorizado com a hipótese de perder o trem, comecei a correr no meio do tumulto. Ao avistar o trem, vi meu irmão ao longe, na janela descabelado e desesperado fazendo sinal e gritando, e então ouvi o sinal que o trem ia partir.

Sabe aquela história de rever toda a sua vida antes da morte? Pois é, antes de me atirar naquele fosso do fedor eterno, revi em minha mente em frações de segundo, vários momentos felizes: minha cama limpa, o chuveiro de minha casa, sabonetes e desinfetantes que antes eu desdenhava como excessivamente químicos. O que eu não daria para que toda aquela imundície se transformasse num mar de desinfetante, com toda sua química maligna. Eu até chafurdaria com prazer nesse lago de química anti-séptica.



É difícil descrever com exatidão a cena ridícula de uma pessoa segurando o chapéu e correndo
desesperadamente pelas linhas de trem, saltitando entre montes de bosta da mais fedorenta que se possa imaginar. Lembro de ter tido o miserável pensamento de amaldiçoar toda comida indiana do mundo, com seus litros de óleo e temperos fortes. Lembro de ter amaldiçoado todos os informantes e filas indianas; lembro até mesmo de ter amaldiçoado a mim mesmo por trocar o conforto dos livros da minha biblioteca por aquele empreendimento maluco de pesquisa antropológica e estudos. O que eu estava fazendo naquele lugar patinando no óleo com titica humana e correndo como um louco para pegar o trem?


O trem começou a andar e vi o rosto tenso de meu irmão começando a se mover com o andar do vagão. Comecei a correr mais ainda, desesperado, e, quase tropeçando nos pedregulhos do chão, me alinhei com o trem em movimento, tentando encontrar um apoio seguro para tentar subir. Com muito esforço consegui subir três vagões atrás do meu, para a alegria da torcida das pessoas do trem, que queriam que eu conseguisse, e decepcionando a risonha platéia do outro lado da plataforma, que provavelmente queria ver um ocidental escorregar no cocô.

Sabe aquela coisa de você só dar valor a uma coisa depois que a perde? Aquele trem errado era minha casa, meu porto seguro. Sentei esbaforido e resoluto: iríamos até Amritsar e resolveríamos tudo lá. Se desse tempo até tentaríamos conhecer um pouco da cidade. Resolvi relaxar e esquecer temporariamente planos e programações.

Depois do inferno, tudo parece agradável e reconfortante. O Lonely planet se transformou num grande companheiro e fiquei muito contente por estar indo para Amritsar. O melhor a fazer era chegar lá e depois se preocupar com o problema. Qualquer coisa eu pegava um avião para chegar a tempo. Na pior das hipóteses a minha mulher chegaria sozinha em Mumbai, o que seria horrível, mas não a pior coisa do mundo, era só ela ir para um bom hotel, andar apenas de táxi e ir para o norte de avião me encontrar. Uma mulher forte como ela compreenderia a situação e daria um jeito de resolver o problema, apesar das dificuldades de se deslocar na Índia. No conforto desse pensamento de cunho quase "entreguista", relaxei pelo resto da viagem, curtindo a idéia de ir para Amritsar. Acho que relaxei tanto, que o rapaz que viajava do meu lado, entrou no clima e inesperadamente deitou no meu colo. Deixei, pois isso é comum entre eles e não tem maldade ou conotação sexual nenhuma. Só não fiz cafuné, pois seria um paradoxo acariciar a cabeça de um indiano depois de querer tanto arrancar uma . Fui até o final da viagem nesse clima de "love,love,love", mas cheguei a conclusão, que depois dessa viagem seria muito difícil escrever novamente sobre ahimsa, a não-violência, pois soaria de forma muito hipócrita.


Damião capturou o momento de paz

p.s: Muitos devem estar pensando que fiquei doido e virei um cão raivoso. Quem já se arriscou a viajar para a Índia totalmente fora dos esquemas das agências de turismo, misturado com o povão, e ficando fora da segurança dos ashrams, há de se solidarizar e compreender as fraquezas humanas. E certamente esta não foi a única e nem a vez em que fiquei mais furioso, mas isso é uma outra história.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O albergue dos errantes

Quem já leu o estupendo clássico "Os miseráveis" de Victor Hugo há de se recordar da triste história de Jean Valjean, um homem bom, mas marcado pelo sofrimento e por uma injustiça, que após anos na prisão e depois de ser acolhido por um padre, acaba por ter uma recaída e roubar a casa paroquial no meio da noite e fugir. Ao ser preso e em seguida levado pelos policiais a ter com o padre, o mesmo diz à polícia que dera a prataria ao fugitivo, e acrescenta que Valjean esquecera de levar os castiçais valiosíssimos. O pároco coloca os castiçais na matula do assaltante e dispensa os policiais. Com esse ato de perdão incondicional e altruísmo, o vigário desarmou totalmente Jean Valjean, dando-lhe uma nova chance de obter a liberdade e ainda restituindo -lhe a fé no ser humano.

A despeito da admiração por esse episódio (que é fruto da imaginação do escritor), e sem negar que obviamente houveram boas pessoas em dois mil anos de história do catolicismo, devo dizer que sempre fui completamente implicante com a religião católica. Sempre tive urticária de entrar em igrejas e asco de pensar na forma como os homens que dirigiram esta religião se apropriaram dos ensinamentos de Jesus (que admiro incondicionalmente) e erigiram uma instituição hipócrita, dominadora e inescrupulosa que assombrou o mundo por séculos com seus desmandos, tiranias e crimes.

Já tinha essa implicância quando era criança - muito antes das aulas de história medieval exaltarem esse sentimento - preferindo bem mais as sessões de um centro de umbanda que meus pais frequentavam naquela época. Os atabaques, as danças e as roupas, além obviamente da imensa natureza à volta do local, faziam muito mais sentido para mim, do que aquele sotaque de gringo forçado dos padres (é obrigatório falar daquele jeito para se ordenar na igreja?), além daquelas estéreis repetições mecânicas dos sacramentos. Achava, já naquele tempo - na incapacidade de adolescente de julgar de forma "desapaixonada" - que era uma religião vazia de sentimento, uma religiosidade de etiqueta, na qual muitas pessoas diziam que eram católicas, mas aquilo não fazia absolutamente nenhum sentido prático na vida delas e, principalmente, que aqueles ensinamentos de Jesus não lhes pareciam aplicáveis na vida cotidiana. Não virei umbandista, embora tenha continuado amando a natureza, a música e a cultura da África, mas a rejeição ao catolicismo permanece, apesar de me considerar cristão.

A vida sempre nos dá oportunidades de rever conceitos e aliviar da frieza ou crueldade a nossa opinião nos julgamentos. Nunca achei que todos os padres são ruins, nunca mesmo, mas sempre tive uma certa reserva com eles, ou até mesmo desconfiança. Mas nessa viagem tive a oportunidade de travar contato com um padre sensacional. Logo na Índia fui ter a oportunidade de rever meus conceitos a respeito dos padres. Maluco isso não?

A experiência do meu irmão em isolamento e sobrevivência na montanha me fez atinar para o fato de que com as crianças ainda no Brasil, eu também tinha possibilidades de testar a minha própria tenacidade após alguns anos de conforto acumulado e saber se esse couro velho ainda aguenta umas lambadas, quer dizer, se ainda podia me virar com pouco ou nada. Resolvi então passar uns dias na Índia como um "sem posses", não chegando a dormir na rua, pois isso é difícil considerando a imundície daquele país, mas passando um curto período sem usar dinheiro nenhum. Duas coisas serviram-me de inspiração: uma foi o desejo de saber se eu ainda tinha tenacidade suficiente para viajar sem grana, de carona, passando perrengue - durante alguns anos, quando era artesão, tive a oportunidade de vivenciar esse tipo de vida, viajando como andarilho, ou de carona, subindo em caminhão de leite, carroça, carreta, carro de boi, como desse para viajar. Outra inspiração óbvia foi reler antes de viajar "on the road" (pé na estrada), de Kerouac, que sempre inflaciona meus instintos temerários de viajante.

Tinha mesmo de ir ao encontro de meu irmão, pois tinha combinado com ele quando me enviou uma mensagem. Vi então que essa seria uma ótima chance de colocar o plano em prática. Fui ao seu encontro com a proposta firme de desconsiderar a possibilidade de usar dinheiro, viajando de "general class", junto ao povão, sem pagar, entrando em vagões de carga, caminhando pelos trilhos, como nos livros do Jack london. Após um curto período em Monkey hill junto a meu irmão, tivemos que dormir um dia em Lonavla, a fim de pegar o trem no outro dia rumo à Mumbai. Nem tinha levado dinheiro, para não correr perigo de ceder à tentação de ser frouxo e correr para um hotel. Dormir na estação de trem, na Índia, também não era algo que me dava nenhum estímulo. Foi quando meu irmão me falou: "Vamos dormir na igreja, o Padre é gente boa"....O Damião tinha dormido lá duas vezes, pois a igreja era quase ao lado da estação e é dificílimo pegar o trem que pára na estação mais próxima de monkey hill.

Na estação de Lonavla passa apenas um trem por dia, que fica parado na estação durante cinco minutos e que depois pára próximo da estação de Monkey Hill por uns vinte segundos. Tecnicamente não existe essa estação, pois é apenas um posto de verificação de freios no meio do nada (vide a postagem "estação monkey hill"). O trem freia, e ao parar já começa a andar quase que imediatamente. Em tese você nem pode descer nesse lugar, pois não há nada. Quando o fiscal percebe que você vai descer ou subir nessa rápida parada, logo grita e tenta te impedir. Além do mais, é quase uma odisséia sair do vagão com um milhão de pessoas, nesse pouco tempo e pular. Esse trem é basicamente quase todo de vagões general class e, por esse motivo, fica lotado de indianos viajando de graça, de forma que só não vai gente no teto. Você não pode comprar uma passagem para esse lugar, pois tecnicamente não existe. Se não souber o horário do trem específico, o número e o nome, também não vai descobrir, pois na estação de Pune e na de Lonavla, ninguém sabe te dizer nada a respeito. Meu irmão sabia os dias e horários desse trem pois tinha ficado amigo do funcionário da estação de verificação. O moço sempre ficava sozinho, então adorava as poucas vezes em que Damião passava por lá para ter alguém para conversar, oferecer um chai e água. Além do mais, meu irmão deixava sua mochila guardada com ele.

Em duas situações em que meu irmão precisou pernoitar perto da estação de Lonavla - pois tinha recebido informações desencontradas sobre o horário do trem e ainda não tinha os horários - ele ficou nessa igreja católica, sob o auxílio do padre, pois assim poderia conferir todas as possibilidades e descobrir o trem certo.

Juro que estranhei, pois nos tempos de artesão, quando ficava sem dinheiro nenhum em alguma cidadezinha, nunca pude contar com a bondade ou boa vontade de algum padre. Nem mesmo tolerância para dormir na porta ou dentro da área do terreno da igreja. Mas na falta de outra perspectiva, já que precisava ir para Mumbai, resolvi rumar para a igreja com meu irmão, conformado no pensamento de que "ajoelhou tem que rezar".

Durante o caminho especulava sobre a opinião do padre, agora acolhendo duas pessoas ao invés de uma. Provavelmente acharia um absurdo ou abuso, sendo a casa paroquial um lugar de oração e não um hotel para vagabundos. Eu achava que só poderia ser essa a sua concepção.


Chegando lá, esperamos a missa acabar. Nós dois exauridos de cansaço e ainda sujos de andar horas no mato, na porta de uma igreja na Índia, vendo aquela cena surreal de senhoras de sari, com roupas tipicamente indianas, saindo da igreja. Quando tudo acabou, o Padre chegou até a porta e nos viu. Cumprimentou meu irmão, provavelmente já adivinhando a respeito de suas intenções, e se aproximou para conversar. Meu irmão explicou tudo para o padre com aquele seu inglês macarrônico e eu, preocupado dele não aceitar, intercedi atropelando a conversa dizendo que dormiríamos no jardim, que não queríamos dar problema. Estava muito cansado com toda aquela "aventura", e tinha chegado à conclusão de que estava ficando velho para essas coisas, então fui logo me metendo na conversa com medo do padre não deixar. Mas ele sorriu bondosamente e recusou minha proposta dizendo que eles tinham um quarto de hóspedes com banheiro na parte de trás da igreja, que meu irmão mesmo já tinha dormido nele. Não acreditei quando ele disse isso, pois no calor da confusão (e bota calor nisso), tinha esquecido de perguntar para meu irmão em que condições ele dormia na igreja, pois para mim era óbvio que só poderia ser na porta ou coisa parecida. O Padre nos levou para um quarto fresco e limpo, com ventilador, duas camas, um banheiro do lado, e pasmem, nos deu ainda - insistindo para que aceitássemos - um bolo de nozes que uma devota tinha lhe dado. Dentro de nossas perspectivas, aquele quarto limpo e aconchegante, me pareceu naquele momento mais confortável do que o do ótimo hotel em que tinha me hospedado em Londres.

Tivemos uma noite reconfortante depois de dias cansativos e, no dia seguinte, fiquei de conversa com o simpático padre a respeito do problema que estava ocorrendo na Índia, onde hindus fanáticos e ignorantes já tinham queimado vivos quatro padres católicos. Questionei-o se ele sendo indiano não via de alguma forma uma explicação para isso na lei de causa e efeito, já que no passado a igreja tinha procedido dessa mesma forma, e se não tinha medo de atitudes extremas como essa, sendo também padre. Tranquilamente ele me disse que o dever dele era se preocupar com os assuntos da paróquia e promover o bem, afastando assim qualquer medo. Achei fantástico, simples e eficaz. Um padre verdadeiramente cristão em plena Índia hindu. Nunca vou esquecer o semblante e o olhar bondoso desse padre indiano, e não me perdôo por ter esquecido seu nome (o cabeça de banana do meu irmão nunca perguntou). Fomos embora da Igreja com o coração leve, e pegamos o trem correto em direção a Mumbai.

Colocamos um ponto final nessas idéias de viajar sem eira e nem beira, pois tinha que pegar o dinheiro, as coisas e atravessar o país, em direção ao norte, sem perder tempo. Minha mulher e as crianças chegariam em uma semana e eu precisava ir para Rishikesh alugar uma casa para a gente morar.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sobre tetos de estrelas

Quando meu irmão se tornou adolescente ele virou meu companheiro de dormidas ao ar livre . Já fazem alguns anos que temos colecionado noites gloriosas sob o manto estrelado da noite.

Não sei de onde surgiu essa idéia, mas me lembro desde muito cedo, dessa coisa de pular a janela no meio de uma noite insone e me acomodar com uma coberta no quintal, no meio do gramado ou no jardim. A sensação de inquietação passava com o ar frio da noite e o barulho dos grilos e, após ficar de vigília para assistir as estrelas cadentes, eu dormia tranquilo até de manhã cedo, acordando a tempo de pular a janela de volta antes que meus pais acordassem.

Decerto que estas experiências por vezes podem ser mais cansativas do que a boa e tradicional dormida sobre os colchões e entre paredes. Mas o desconfortável para o corpo pode ser gratificante ao espírito, e isso suplanta qualquer cansaço físico.

Os anos foram passando e o hábito se enraizando. Montanhas, cachoeiras, matas e praias desertas. Acostumar-se a dormir ao relento trás uma sensação de liberdade e uma independência de inúmeras situações. Você não depende de nenhuma estrutura humana, não depende de pousada, restaurante ou coisa que o valha para pernoitar em qualquer lugar que esteja visitando. Com isso, tive (e tivemos, quando estava acompanhado) a chance de dormir e explorar diversos lugares que outras pessoas não tiveram. Parques nacionais com áreas vetadas, cachoeiras em terras particulares de fazendas e lugares que se tornavam inacessíveis pela distância, inóspitos para se passar a noite, ou proibidos de acampar. Todos se tornavam acessíveis pela adaptabilidade de se dormir em qualquer lugar. E o melhor é que esse "qualquer lugar"eram sempre lugares especiais que podíamos desfrutar sem outras presenças humanas.

Quando era adolescente, usava o saco de dormir, o que abdiquei depois por achar mais simples levar uma coberta e agasalho. Não me lembro de nenhum resfriado, de uma situação de medo grave, ou mesmo uma picada alarmante de inseto. Mas recordo-me de dezenas de luares incríveis, rios de estrelas, cantos estranhos de pássaros noturnos e o movimento das criaturas da noite. Lembro que algumas das idéias e percepções mais incríveis que tive na vida foram exatamente nesses momentos de banhos de céu. Lembro da sensação exultante de estar conectado ao universo, simplesmente por estar olhando e prestando atenção, interligado com uma parcela visível da grandeza do cosmos no céu noturno.

Por vários lugares onde estive em minha vida, se havia uma natureza ao redor que valesse a pena, acabava dando um jeito de dormir ao ar livre. Quando pensei na viagem para a Índia, cheguei a especular várias hipóteses, dormir nas cavernas de Ajanta e Ellora - mas temia que os guardas do parque nos descobrissem a noite - dormir numa região himalaica - mas pensava no frio intolerável - dormir num parque nacional (conheci um ucraniano louco que dormiu na selva) -mas ficava com medo de tigres e najas. Até mesmo em sadhus loucos que poderiam me atacar a noite eu especulei. No fim das contas, por vários temores de um país desconhecido, fui para a Índia sem disposição para acampar com barraca, quem diria sem nenhuma.

Damião foi antes que a gente para a Índia. Foi despreparado, pois decidiu de última hora. Viajou com pouco dinheiro, pois eu levaria o seu dinheiro mais tarde (já que receberia para ele um acerto atrasado de seu trabalho) que por sua vez correspondia a quase todo o dinheiro que ele teria para a permanência no exterior. Não quis levar dinheiro emprestado, não quis adiantamento. Teimoso, quis se virar com pouco. E assim foi para a Índia, decidido a se virar. Sem falar inglês direito, sem conhecer costumes, sem manuais, guias ou ajudantes. Resolveu me esperar em Pune, onde eu chegaria para estudar. Não gostou da cidade, nem das pessoas, foi então para Lonavla, cidade menor no caminho, onde também não deu muito certo, não gostou da cidade, dos hotéis e nem do ashram. Pouca satisfação, dificuldade de adaptação, tendo que defender seu pouco dinheiro da avidez dos indianos, resolveu ir para as montanhas ao redor da cidadezinha, tomando uma decisão que provavelmente eu não tivesse coragem de tomar se estivesse sozinho na mesma situação.

E assim foi para o mato. Comprou uns tecidos, corda e linha forte, farinha de trigo e manteiga. Guardou sua mochila com um indiano gente boa e foi para a montanha dormir com os macacos selvagens. Costurou uma rede comprida para dormir e filtrava a água de um riachinho cheio de musgo com o tecido da blusa. De noite fazia chapatis em cima de uma pedra no fogo e comia com manteiga. Com exceção de umas frutas que comprou quando foi uma vez para a cidade para me escrever, passou todo esse período à base de pão e água.

Nesse lugar passou quinze dias me esperando, com a companhia dos macacos ariscos e de um céu maravilhoso. De dia via o sol nascendo no platô ao som da passarada, caminhava bastante explorando o lugar e presenciava o sol se pondo. Sombra só havia nas "grutas" que os arbustos formavam, lembrando iglus verdes ou casinhas de caramanchões. Numa dessas bem grande ele armou o "acampamento". Não levou nem um livro, nem instrumentos para tocar, nenhum aparelho de música, só uma caderneta de anotações. Condições que poderiam deixar louca ou entediada qualquer pessoa mais irrequieta. Quando cheguei na montanha, com as indicações que ele me passou por e-mail, encontrei ele mais magro, mais queimado de sol e mais feliz que no seus últimos tempos vivendo na cidade.

Lá passei dois dias muito felizes também, mas não tive disposição de dormir no chão. Preferi a outra rede que ele costurou para mim.


"O sonho acabou, quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou" Gilberto Gil

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O bom selvagem

"Eu vivo apenas com meus próprios meios,
eu vivo em penas com meus sentimentos
Nasci de um povo primitivo
Eu sou o homem de neanderthal
Catando caramujo na beira do rio."





Quero falar do Damião. Pois se ele não fala, alguém tem que falar. Ele fala... mas com canções, com sua arte. Só quem conhece o Damião sabe dessa figura única, singular, exclusiva. "Diferente completamente", como diz o coronel Rati do desenho Mógli. Tão diferente que incomoda. Todo mundo fica curioso para saber o que o Damião está fazendo. Todo mundo anda sempre "preocupado" com os rumos de Damião. Mas ele mesmo não se ocupa com isso não.

Quem vai para a Índia e fica isolado nas montanhas? Convivendo com os macacos? Dormindo ao relento, em uma rede por ele mesmo costurada? Comendo apenas chapatis com manteiga assados na fogueira? Bebendo água de um ribeirinho filtrada pelo pano da blusa?

Não, Damião não é sadhu e até onde sei, não tem pretensões de ser. Agora o motivo pelo qual ele fez isso, acho que nem ele mesmo sabe responder. Vivência espiritual? Com certeza foi, mas acho que ele mesmo não pensou nisso não. Talvez se eu perguntasse, suponho que ele responderia algo do tipo: Sei lá! Fiz porque tinha que fazer. Ou simplesmente: "Fi-lo porquê qui-lo"!

p.s: O Damião foi para a Índia antes que todos nós, e passou um tempo vivendo como "selvagem" nas montanhas de Lonavla, um lugar agreste e quente, com escassez de água. E a experiência deve ter sido mesmo boa, porque quando o Rodrigo chegou, ele foi encontrar com o Damião e por lá ficaram mais um tempo. O Damião só teve o trabalho de costurar mais uma rede.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A vaca pentelha

Todo mundo já sentiu o peso de uma exclusão (na verdade, em muitas ocasiões é uma sorte). A sensação, desagradável para muitos, de não se sentir querido, bem vindo ou amado. Os Beatles, que eram muito sensíveis, já tinham percebido o problema lá pelos idos de 65 quando começaram a compor várias músicas que fazem menção à solidão humana, e até criaram um grupo imaginário, alter ego psicodélico de si próprios, chamado Sgt Peppers lonely hearts club band, " a banda dos corações solitários do Sgt. Pimenta". Nota-se com isso, bem como nas letras de músicas como Nowhere man e Eleanor rigby, uma intenção de abrigar, auxiliar, estender a mão, incluir, ou seja, ser solidário com o solitário.

Transitando pela vida, posso dizer que os tipos humanos mais interessantes que encontrei não foram em meio às massas, ou nos círculos de sucesso, mas justamente nos "acostamentos das rodovias", às margens e longe das vitrines.

Quem já viajou para a Índia sabe da capacidade que o indiano tem de incluir, seja aceitando um saddhu canibal, ou colocando vinte pessoas onde só cabem duas ou três e ainda assim permanecendo de bom humor. O Indiano talvez seja o povo que mais tem capacidade de conviver com as diferenças entre pessoas ( mesmo que às vezes olhem para os gringos como se fossem ets. ), pelo menos eles conseguem exercer essa habilidade entre eles mesmos.

De certa forma podemos dizer que a tolerância também é grande com os animais, sejam os macacos gangsters que vivem do saque, sejam as sagradas vacas vira-latas.

Talvez por se sentirem bem vindas, ou por receberem muita tolerância (mas mais provavelmente ainda pelo fato de não sofrerem a ameaça constante de virar bife), as vacas estão por toda parte e no caminho de quem quer que seja, sempre dóceis e receptivas ao toque humano, constantemente procurando comida, comendo os restos de feira, revirando pilhas de lixo ou mesmo comendo cartazes afixados nos muros.

Quando chegamos na Índia, nós e as crianças nos deliciamos com a possibilidade de poder acariciar as vacas, que não fugiam à nossa aproximação. E algumas vezes colocávamos nossa pequenina ou o neném sobre o lombo de alguma.

Com o tempo, e à medida em que o verão se aproximava e as pessoas começavam a frequentar mais a praia do Ganga, víamos constantemente uma cena deveras hilária. Uma vaca branca baixinha e com barriga muito gorda, como se estivesse grávida, abordava os banhistas e frequentadores, provavelmente em busca de comida, e as pessoas saiam levantando rápido e desajeitadamente, para não terem suas cangas pisoteadas e suas bolsas fuçadas.

Cada hora ela ia na direção de uma pessoa ou grupo diferente, e as reações eram quase sempre as mesmas: projéteis de areia ou banhos de água mineral, tapas e gritos para afugentá-la. Ficávamos olhando de longe aquela cena e morrendo de rir, e acabamos por chamá-la de "vaca pentelha".

Um dia resolvemos guardar as cascas de fruta para a pobre e desprezada vaca, e quando a avistamos, vindo em nossa direção, ficamos contentes com a oportunidade de sermos gentis com ela. Qual foi nossa surpresa, quando ela ignorou a comida e encostou em nosso corpo, e tal qual um gigantesco, rotundo e desajeitado felino, começou a esfregar o pescoço como quem pede carinho. Ficamos então durante alguns instantes acariciando-a, a família toda, e a partir desse momento, ela não se separou mais da gente. A vaca estava necessitada de outro alimento, o carinho e atenção.

Parece até exagero, ou imaginação, mas a verdade é que se tornou um ritual, e como tal, tinha o aspecto da repetição em vários detalhes: chegávamos sempre na praia, depois do almoço, quando não tinha nenhuma aula, e algumas horas depois, quando o sol descia um pouco no céu, avistávamos ela, andando vagarosamente, em seu ritmo cadenciado, vindo em nossa direção, e para espanto nosso e geral, não parava mais para importunar ninguém. Não tinha mais sentido, afinal, a vaca pentelha não precisava mais mendigar as migalhas de amor do próximo, pois agora ela tinha seu próprio bando, seu grupo, seu lugar ao sol. E como a vaca pentelha assumiu o lugar de um animalzinho de estimação, ficava deitada ao sol em frente ao nosso "acampamento", ao alcance do carinho das crianças. Incrível, pois ela só faltava virar as patas para cima como um cão.

Adotamos a vaca pentelha, que ninguém queria por perto e com ela tivemos incríveis tardes na prainha do ganga, aceitando-a como um amigo incompreendido, com suas dificuldades, com sua inseparável baba elástica que tantas vezes nos sujou as roupas e até meu rosto uma vez. Com sua língua e lambidas ásperas e meladas, só Deus sabe do que. E sentimos hoje uma grande saudade de seu jeito bonachão e seu carinho desajeitado. E como lembrança, trouxemos o seu colar com um sininho velho e enferrujado para as crianças brincarem e lembrarem sempre da vaca excluída e da grande lição sobre incluir os outros.


Moral da história: "Quando derdes uma festim, não convideis seus parentes e amigos, que podem lhe retribuir, mas convideis os pobres e estropiados, que não tem como lhe pagar" (Jesus). Mas assim mesmo, a vaca pentelha nos retribuiu com muita amizade .


obs: Infelizmente ficamos sem câmera no final da viagem e não temos as fotos da mimosa se esfregando e até recebendo massagem, feita por nossos pés (padaghata) em suas costas.

sábado, 10 de outubro de 2009

Descobri o caminho da salvação

Sempre fui fanático por cinema, e ao longo da vida posso dizer que apreciei variadas formas dessa arte , de maneira livre e democrática e sem muitos preconceitos. Já chorei de rir e de emoção com o cinema italiano antigo e moderno, curti sem companhia – pois é difícil arrumar interessados - os filmes da nouvelle vague francesa, tive meu deslumbramento com o cinema novo, e claro, nutri-me com os fimes contraculturais, os surrealistas de Buñuel e com o cinema marginal “udigrúdi” (underground brasileiro) dos anos setenta.

Nunca tive um gosto “purista” ou “elitista”, pois creio que sempre dá para tirar alguma coisa dos filmes, salvo exceções. E sendo assim, também me diverti com a “tosqueira” do cinema espanhol - com filmes barangos, dramáticos, passionais e viscerais de diretores como Bigas Luna e Almodóvar – com algumas pornochanchadas cômicas nacionais realmente engraçadas (de tão bizarras) e com comédias americanas que fariam os intelectualóides ficarem de cabelo em pé. Singrei os "sete mares"em busca de milhares de filmes, de Hitchcock à Herzog, de Kurosawa ao Woody Allen, de Bertolucci e Tornatore passando por Milos Forman, Fellini, Truffaut e Polanski. Impossível é desfilar aqui toda a galeria dos meus heróis, já que tive fases de fascinação por “trocentos” diretores diferentes, onde adorava estudar as mentes loucas, criativas e geniais de cada um. Certamente passei muito mais tempo vendo filmes e documentários – apesar de abominar e não ter canais de tv – do que meditando, praticando ou estudando. De forma que nesse “balaio” já passaram fimes de todos os tipos, do drama e romance à comédia e suspense, da ficção inteligente ao terror psicológico. Dos épicos aos filmes de guerra com caráter humano e educativo. Só não suporto os filmes ridículos americanóides de explosão e tiros, todos aqueles com títulos terminados em “al” como “fatal”, “final”, “total”. Tenho como regra não assistir filmes que tenham essas palavras no título. Ficções com a estética de filmes como Apolo 13, Indepedence day ou mesmo o aclamado Matrix me dão urticárias, não assisto nem se for para ganhar dinheiro. Mas sem implicâncias passeei por todas as formas, neo-realismo italiano, expressionismo alemão, filmes holandeses, cinema sueco (ingmar bergman e outros, não vi pornô sueco), cinema mexicano, cinema do oriente médio – especialmente o iraniano. Acho fantástico o novo cinema brasileiro e novo asiático: tailandês, japonês, vietnamita, coreano, chinês – o melhor do continente – outro dia vi um filme do Quirguistão e um do Butão maravilhosos. Como vêem, vejo todo tipo, mas a essa altura os leitores devem estar se perguntando: e o cinema indiano? Alguns devem pensar que o autor do texto esqueceu de mencionar o país que tem a maior produção cinematográfica do mundo, superando os Eua, e que é também a fonte inspiradora desse virtual diário informal de viagens. Não, não esqueci, pois é sobre isso mesmo que resolvi escrever. Citando de forma exaustiva as minhas aventuras cinematográficas, para que ninguém achasse que minha opinião era preconceituosa, ou fruto de uma mente fechada para novas formas de cinema ou expressões culturais diferentes.

Propositadamente não citei o cinema indiano no meio dessas listas, pois não considero os filmes indianos como uma forma de cinema, tal qual as outras, mas como um autêntico caminho de libertação espiritual. Isso mesmo, AUTÊNTICO INSTRUMENTO DE MOKSHA. Mas somente para os heróis ou loucos que conseguirem assistir mais de vinte minutos de um “clássico” de Bollywood – a "hollywood" indiana de Bombaim - sem sofrer danos cerebrais irreversíveis.

Os filmes indianos são como um curto circuito nos sentidos, no bom gosto, no bom senso e no bom humor. São capazes de provocar um estrago na mente de uma pessoa sensata, tal qual um desastroso e despreparado despertar de kundalini, a energia primal, numa pessoa que ainda não está pronta. Já entendi porque a Índia tem tantos iluminados: colocando as massas em peso para assistir ao cinema! Grande parte não resiste ao impacto e sai das salas de cinema como se tivesse passado por uma lobotomia – por isso o indiano parece ser tão abobado (quem pensava que a causa era a desnutrição crônica errou, isso é causado pelos filmes) – e a diminuta parte que conscientemente consegue assistir até o fim do filme com paciência, determinação, boa -vontade e ainda assim resistir até o final da exibição, preservando a lucidez, atinge o prêmio máximo, que pelas bandas de lá é chamada por muitos nomes:nirvana, samadhi, moksha, ananda, kaivalya ou o paraíso, se preferir. Pois cá para nós, haja peito e capacidade para aturar algo tão ruim como aqueles filmes, haja resignação.

Creio fielmente que o cinema é a única das artes que não está em franca decadência, e que continua evoluindo positivamente, e isso acontece desde os movimentos em países com poucos recursos financeiros, até o cinema “blockbuster” dos Eua. De forma geral e ampla, acho que o cinema de todos os lados do mundo só faz melhorar e evoluir. O cinema indiano é a máxima exceção da regra, pois é abominável. Eu poderia passar o resto do texto citando adjetivos pejorativos, mas vamos direto ao ponto, às características mais marcantes: cafona e debilóide! Isso define toda, ou quase toda a produção daquele país.

Reflitam por alguns instantes, fechem os olhos, respirem fundo e pensem numa coisa bem brega, mas bem brega mesmo, pensem na coisa mais cafona e de mau gosto que você já viu na vida – Falcão e latino, os cantores? Roberto Carlos? Reginaldo Rossi? Wando, o obsceno? Não adianta, isso que você pensou, seja lá o que for, já perdeu feio dos filmes indianos em qualquer escala de comparação. Alguns vão pensar em baranguices típicas como “bolerões acougueiros”, duplas sertanejas, literatura barata de romance vendida em bancas - tipo Sabrina ou Júlia – ou então vão lembrar da secretária doméstica suspirando ao ouvir aquele embalo quente no radinho de pilha, lembrando do amado na gafieira do domingo. (Falando nisso tem ainda) Domingão do Faustão, Gugu liberato, Sílvio Santos, novelas mexicanas, decoração de casa de avó. Podem ainda lembrar da breguice da juventude: Menudos, Dominó, Polegar, New kids on the block e agora ainda tem um tal de KLB,mas mesmo assim,de nada vai adiantar, por mais que você pense, por mais que se esforce, nunca vai conseguir imaginar algo mais barango do que os filmes indianos.

Se você vê a cara dos galãs destes filmes, principalmente no momento em que lançam aquele inconfundível olhar para as mocinhas e começam aquelas danças insuportáveis, juro que vão me entender. Só de pensar nas danças ARRGHH! - pausa para um ataque de fúria – chego a perder o controle. E o pior você não acredita, pois aparentemente todo o enredo (se assim pudermos chamar) se desenrola como um pretexto para essas danças. A luta entre o bem e o mal, mocinho e vilão, o romance entre galã e mocinha, tudo acaba em dança, onde todos com jeito de zumbis-robôs e cara de retardados se entregam ao ritmo daquelas dancinhas saltitantes e cheias de mãozinhas, sorrisos e olhares. Um pastiche surrupiado dos mudras e drishtis das riquíssimas danças tradicionais indianas.

As histórias ( se assim pudermos chamar ) são sempre as mesmas, simplórias, sem nexo, onde um imbecil bonzinho luta com outro imbecil mauzinho por uma moça abobada (parece o desenho do Popeye).

O homem que é considerado o maior ator de todos os tempos na Índia – não me recordo o nome – é o maior canastrão que já vi, uma mistura de Tarcísio Meira, Francisco Cuoco e Toni Ramos – SOCORRO! E ele é uma espécie de Deus por lá, uma unanimidade. É incrível como todo o país em massa, todas as classes assistem cinema, e talvez seja essa lavagem cerebral a culpada de todos os problemas da Índia, ao invés da superpopulação ou de séculos de exploração imperialista. Onde houverem jovens juntos, pode esperar, vai haver um maldito celular – ainda bem que não são aqueles aparelhos de som enormes e insuportavelmente alto dos barangos daqui – tocando os hits dos filmes e vários rapazes dançando alegremente, se exibindo como numa competição, para todo mundo ver, mesmo quem não queira. E dá-lhe Michael Jackson de Mumbai, e dá-lhe Rick Martin de Kolkata, e dá-lhe Sidney magal de Rishikesh. Se você for a Índia, inevitavelmente vai ver pelos próprios olhos.

Sendo assim, você que tem aspirações espirituais e pensa em ir para Índia em busca de um guru, ou de retiro espiritual, esqueça essa idéia, ao invés disso faça uma excursão pelos estúdios de Bollywood e depois se interne numa mostra de filmes deste tipo de cinema. Se você resistir aos filmes e conseguir sair ileso, o mundo ocidental vai ganhar mais um mestre iluminado.

Agora deixa eu parar de escrever e lembrar, antes que eu tenha um acidente cerebral vascular.
O panteão dos Deuses de Bollywood

PS1: Não tentei e não consegui assistir mais que dez minutos, mas uma vez tive que ver umas cenas constrangido por estar na casa de pessoas indianas. O pior, é que por mais que os filmes pareçam uma comédia pastelão non-sense caricata de quinta categoria, você não pode rir, mesmo que a família inteira esteja hipnotizada e balançando a cabeça sem poderem se controlar.

P.S2: É desesperador pensar que são gastos milhões – muitos mesmo - de dólares com esses filmes num país que é miserável, sendo que em países ao redor – como o Irã e Afeganistão por exemplo – conseguem produzir filmes sensíveis, belos e criativos com míseros dólares. E olha que a Índia é uma terra de artistas natos, de gente talentosa, onde a dança e a expressão teatral é milenar e uma arte bela e rica. Mas é uma questão de total falta de noção mesmo, os filmes do mundo inteiro chegam por lá, mas eles são ufanistas em relação à isso e preferem sempre o produto da casa.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Um elefante acomoda muita gente


Visitamos um parque nacional no Nepal, onde era possível fazer um passeio de elefante. O maior mamífero que até então tínhamos tido oportunidade de contato tão próximo eram as vaquinhas da Índia.

Logo quando chegamos à cidadezinha, a primeira visão de um elefante andando na estrada bem ao lado do nosso veículo foi incrível. Depois virou uma cena comum de se ver, mas não menos empolgante.

Confesso que a idéia desse passeio gerou em mim um desconforto interno diante da hipótese de estar coadunando ou incentivando a exploração do trabalho do bicho, ao poder “alugar” e me apropriar de seu lombo por algumas horas.
Acho que não devemos ser tendenciosos ao julgar situações, buscando nelas álibis que nos confortem ou confirmem nossas pré-concepções. Nem devemos ser rígidos em convicções que comprometam a percepção e análise de cada caso em separado.

No nosso caso, sem querer advogar em prol dos elefantes ou a favor do nosso passeio, o que pude presenciar em poucos dias de permanência naquela cidadezinha, foi uma relação aparentemente amistosa e harmônica entre os homens e os elefantes, a natureza e o "progresso". Talvez pelo fato deste último, o progresso, estar vinculado à utilização da natureza, seria então inteligente manter a preservação como atrativo do turismo.

Os elefantes são a principal fonte de renda da cidade, estão por toda a parte e, posso estar enganada, mas no pouco que pude observar, eles não me pareciam tristes. Além de usufruírem de certa liberdade (menor que nas selvas, óbvio), pareciam receber bons tratos pelos humanos. Todos os dias, ao entardecer, eram levados ao rio onde eram banhados e acariciados com esfregões por seus “donos”. Esse é um momento ímpar de se ver e participar, pois os turistas que estiverem por perto são convidados a participar do banho, com direito a nadar com os elefantes e receber jatos de água na cara, direto de sua tromba. Eles são muito brincalhões e uma de suas travessuras é sacudir o corpo de um lado para outro até conseguirem nos derrubar na água.






Essa experiência de tomar banho com os elefantes foi certamente inesquecível, para mim e para as crianças. E mais legal do que o passeio pela “floresta” em cima deles (e ainda foi de graça!). Primeiro que floresta mesmo, não havia. Uma vegetação bem pobre, menos verde do que o quintal aqui do sítio ( a vegetação chamada sal forest parece uma savana, só que mais verde). E olha que tivemos a “sorte” de um condutor audacioso que saia da rota comum dos demais elefantes, adentrando em vias com vegetação mais densa e “fechada”. Falamos com a Tatá que ele era o primo do Mógli, pois lembrava-o na “intimidade” que demonstrava no trato com a natureza. Em nenhum momento ele utilizou de violência com o elefante, ao contrário, manteve sempre uma postura de respeito e carinho para com ele, inclusive permitindo que permanecesse parado por alguns instantes para se alimentar. Ao contrário de outro condutor, um senhor de idade, que parecia ter só a experiência mesmo, oca de aprendizado, pois chegou a nos irritar a quantidade de açoites que direcionou ao bichinho. Deveria engolir o orgulho e aprender o ofício com seu colega mais jovem...




Mas, voltando ao passeio, fomos com as expectativas adquiridas das experiências de amigos que já tinham feito a travessia e todos com “sorte” de avistar rinocerontes aos montes (mamãe e filhote!), grupos de veados e bandos de pavões. Nós, no entanto, tivemos que nos contentar com um rinocerontezinho solitário descansando na lama, um pavãozinho distante e uma “passada” de veados tão rápida que quase só percebemos pelo rastro das folhas balançando. O engraçado é que já tínhamos presenciado veados e pavões circulando soltos pelas matas ao redor de Rishikesh. E mais engraçado foi quando o nosso guia gritou :”monkey”, apontando para um macaquinho lá longe, camuflado entre as folhas de uma árvore. Claro que não devemos nunca perder a habilidade de enxergar o valor e a beleza de cada visão, ainda que seja uma visão "cotidiana". Mas foi engraçada a perspectiva de ficar excitado com a visão de um macaquinho diante de tantos contatos com os primatas na Índia. Mas, no fim das contas, estávamos ali mais pela cavalgada nos elefantes. Esse era o motivo principal e todos os animais que víssemos eram apenas um adicional. Desfrutar a experiência de contato com os gigantes mamíferos, pele a pele, que por sinal é muito áspera; vivenciar a perspectiva de sua visão e poder enxergar o mundo da sua altura; conhecer um pouco do seu “ritmo”, balançando de um lado para o outro por duas horas.... E claro, a oportunidade de possibilitar essa vivência para as crianças. Poder contar para o pequeno Ravi que ele já mamou e dormiu no “colo” de um elefante. E ver os seus olhinhos brilhantes e seu sorriso apaixonado, registrando tudo aquilo....



...isso por si só já fez valer toda a história.


Cris

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Encalços e Percalços, terceira parte


Desmistificando os medos, "desmedificando" a vida
Levar um bebezinho de três meses para um país desconhecido, mais precário economicamente, cheio de idiossincrasias culturais “estranhas” e mil problemas sociais, já era motivo suficiente para sentir insegurança, ser taxada de louca, irresponsável, negligente, imprudente, e todos os “(pré) conceitos” possíveis de se chegar por meio de um raciocínio até lógico e coerente, levando em consideração o padrão “comum” de pensamentos das pessoas.

E o que dizer sobre levar um bebê que nasceu com um “probleminha” no intestino grosso e que por isso passou por uma cirurgia nos primeiros dias de nascido?

Não quero louros por isso, e nem acho que é motivo para tal. Muito menos me importo com as críticas, senão não me exporia. O único motivo pelo qual abro mão de nossa privacidade, contando esse fato, é porque acho que uma experiência bem vivida por uns, pode ser bem aproveitada por outros. “Eu não sou besta pra tirar onda de herói”, não busco esse papel e nem me afinizo com esses personagens. Como disse Arnaud Rodrigues: “O herói é o cabra que não teve tempo de correr”.

Simples assim: sou uma mãe que passou por dificuldades comuns a muitas outras e com certeza muito menos que muitas outras, mas suficientes para algumas lágrimas, tensão e medo e, principalmente, muito conhecimento. Um verdadeiro “empurrão” em direção a Deus. Uma compreensão da realidade até então não explorada ou vivenciada. Um estreitamento na relação com o divino ou pelo menos no que acredito ser divino.

E foi no embalo dessa sintonia, confiando nesse vínculo que tomamos decisões e direcionamentos que tantas vezes contrariaram as expectativas de todo um “mundo” a nossa volta. E como os frutos foram positivos, só posso dizer que foram acertadas as escolhas, apesar de muitos preferirem chamar de “sorte”. Ainda hoje escutamos a frase: “Tiveram sorte, mas e se...” Não! Os tantos “ses” que escutamos não aconteceram. E não acredito que somos pessoas que têm “sorte” a mais que qualquer outra. Apenas não baseamos nossas decisões no “bom senso” comum, com seus milhões de “ses” e “poréns” empreguinados de medo ou comodismo.

“Não vai”, “não faz”, “não deve”, “não pode”! “Está muito frio”, “muito quente”, “é perigoso”, “não tem jeito”...

Quantas vezes escutamos “recomendações” desse tipo, algumas por mero zelo de pessoas que nos prezam, outras por pessoas que, muitas vezes sem querer e sem saber, tentam nos acorrentar em suas próprias “prisões”.

São tantos os momentos em que recebemos os famosos “baldes de água fria”, que já consigo com um mínimo de atenção prever os “arremessos” antes de acontecerem, às vezes até a tempo de abrir o guarda-chuva e evitar ficar encharcado daquela energia que já me é muito familiar: a energia contagiosa do medo.

Não estou falando sobre esta viagem especificamente ou destes ouvintes que ora vos falam, mas de todos os “viajantes” que em momentos da vida resolvem mudar a rota, investir no seu próprio jeito de fazer, criar uma nova forma.

Mas, nesta viagem propriamente, teve um episódio que foi um exemplo clássico de como as pessoas podem querer te desanimar com seus próprios temores . Decidimos fazer um treking no Nepal por vias independentes da máfia das agências de turismo. Resolvemos ir para o Mustang Valley, um lugar além dos Himalayas, numa região vizinha ao Tibet. Mas a única informação que conseguíamos obter das pessoas (inclusive nos famosos guias como lonely planet e etc) eram as possibilidades através de caminhada com guias ou por avião até Jomsom, uma vila com alguma infra-estrutura antes da travessia pela “abertura” existente na cadeia de picos. Nenhuma das duas formas era aceitável para nós. Não iríamos nunca de avião perdendo toda a paisagem geográfica e humana, todas as nuanças do caminho. E duas crianças pequenas eram um empecilho concreto na opção de tão longa caminhada (14 dias só para chegar em Jomsom e nossa vontade era de ir mais além).

Não teria outro jeito, não existe um transporte via terra? Não, não, não, eram sincronizadas as respostas e incisivos os funcionários das agências. Mas não era possível aceitar esse diagnóstico fatalista. Como então se deslocavam as pessoas daquele lugar? Deveria haver um transporte. E acabamos descobrindo, depois de muito procurar junto às pessoas locais, que havia sim uma rota via terra, através de um micro-ônibus adaptado e jeeps, por uma estrada mais ou menos recém aberta. Depois fomos descobrir que o conceito de estrada para eles é bem distante do que aqui consideramos uma via acessível por transportes comuns. Amontoados de pedras, estradas muito estreitas à beira de precipícios, horas e horas de poeira e solavancos de desafiar qualquer sistema nervoso.


Uma francesa amiga nossa (que fazia parte do pequeno grupo de amigos que decidiram aderir à audaciosa aventura), em um momento de desespero, se levantou do banco e gritou ao motorista que parasse pois ela iria prosseguir à pé. Imagine um lugar, a kilômetros de qualquer outro lugar, no meio do nada, no meio da noite, um frio insuportável, isso certamente não era uma boa escolha. Nesse caso sim, um balde de água fria era apropriado para esfriar os ânimos e agüentar o tranco.


A respeito da dificuldade da trajetória, nós já tínhamos sido previamente preparados e excessivamente“alarmados”pela funcionária do órgão do governo responsável por emitir as permissões para entrar no santuário dos anapurnas e na região do reino do Mustang. Mais uma vez aquela mesma situação: indo para um lugar desconhecido, munidos apenas de informações escassas que por si só não são garantia de nada. De novo o prenúncio da “chuva”, aquela energia familiar e em seguida a tempestade de nãos. A moça arregalava os olhos e mostrava os dentes, repetindo insistentemente o mesmo refrão de terror: “Não vá com seus filhos!”. A cada quatro palavras que ela dizia, voltava a repetir a frase. Já tínhamos mudado de assunto, pagado as taxas e com as carteirinhas na mão e lá estava ela com o mesmo repertório: “Não Vai! Seus filhos vão adoecer, tem muita poeira na estrada, muito vento!” Verdadeira “assombra- a- ação” esta mulher, que graças a Deus não tinha poder para me impedir de ir, senão com certeza o faria!Essa ganhou o título de “São Pedro do ano”, Bin Laden, terrorista! Mas totalmente compreensível. Se estivesse no lugar dela também colocaria todos os contras, embora sem tanta ênfase e repetição. Mas ela estava certa em todas as informações que nos forneceu.

Cris e Flora tomando uma "cerva" tibetana numa parada no meio do caminho (brincadeira, era um delicioso chá)

Poeira demais, frio demais, vento demais. Para isso usamos casacos, panos úmidos para superar a falta de janelas nos “ônibus” e atenuar a poeira para as crianças, horários limitados para elas saírem dos quartos. Sendo assim, dimensionando e contornando as dificuldades, o que resta é muito maior que qualquer poeira, frio ou vento. É experiência rica demais!

Difícil ou não, vimos que era possível chegar. E como valeu a pena chegar!

E a conclusão a que chego diante de tudo, é a mesma de Caetano:

“É preciso estar atento e forte! Não temos tempo de
temer a morte!...
Atenção! Tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso!”

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Encalços e percalços, parte dois

Estávamos falando do Goethe, um poeta e filósofo alemão, que foi quem disse que “quando desejamos profundamente algo, todo o universo conspira para que possamos realizá-lo”. Pois então, acho muito feliz essa afirmação. É incrível observar a dinâmica dos acontecimentos quando nos propomos a fazer algo novo. Não precisa nem ser algo grande não, como foi essa nossa viagem, por exemplo. Chamo de grande considerando a nossa perspectiva, dentro da nossa realidade. Para outros uma viagem à Índia pode não representar um grande feito ou realização de coisa alguma.

Mas, seja qual for o novo empreendimento, uma simples mudança no jardim pode proporcionar uma experiência de integração com a natureza e com a dinâmica do cosmos (ou o contrário - o afastamento, dependendo do empreendimento). Temos a oportunidade de observar e vivenciar “forças maiores” regendo a orquestra dos acontecimentos, colocando pessoas e criando situações que se encaixam como peças num quebra-cabeça. Seja “encurtando” o caminho e facilitando as coisas, ou mesmo aquelas situações aparentemente “negativas”,mas que surgem por uma razão maior, seja para desafiar nossa persistência ou pôr em provas nossa paciência. Acho que sempre o objetivo primeiro de toda empreitada é o aprendizado que se adquire durante o caminho, então, dentro dessa compreensão, “tudo é divino e maravilhoso”, como dizia Gal.

Falamos dos partos dos documentos, do dinheiro, mas não falamos DO parto, literal e propriamente dito. Tivemos um parto mesmo, de criança nascida, em meio a essa montoeira de funções administrativas, de repartições públicas, filas, protocolos, carimbos e assinaturas. Nosso menininho já nasceu com a mala feita e a passagem comprada. Aliás, é interessante falar do processo de compra dessa passagem.

Quando decidimos ir, o primeiro passo que demos foi tentar achar as passagens o mais barato possível. Pesquisa noite adentro na internet, rota e empresa mais viável (financeiramente, é claro), achamos! Primeira participação do cosmos, pois era inacreditável o preço comparando com o que já tínhamos encontrado. A reserva era mantida por apenas dois dias, hahahahha que engraçado! Como arrumar o dinheiro em dois dias? Não podíamos perder aquela oportunidade que poderia ser única. Pronto, sucumbimos na primeira dificuldade.

Que nada! Ritual de arrumação e limpeza do carro velho durante todo o dia e madrugada afora. Um verdadeiro desmanche: desmonta a porta, arruma a maçaneta, tira o banco e só aí é uma experiência arqueológica. Várias estórias reveladas embaixo daquele banco. O brinquedinho dos primeiros meses de Tatá, pedras carregadas de qualquer mato, restos de comida, as mil canetas perdidas e várias moedas para ajudar na causa. Finalização com direito a incenso e oração, para que a pessoa que adquirisse o carrinho mesmo que velhinho pudesse desfrutar de boas experiências dentro dele, como nós tivemos.

Dia seguinte na feira: doce inocência acreditar que alguém abordaria dois barbudos e cabeludos, vestidos apropriadamente para uma festa hippie dos anos 60. Ninguém! Um dia inteiro e nenhuma curiosidade para perguntar quanto custava o nosso idoso. No final do dia, derrotados é claro.

Não mesmo. Hora de ativar o plano B. Quem seria a pessoa escolhida pela nossa Fênix renascida das cinzas? É claro que só a mãe para pegar o rabo, ops, ou melhor, o “touro pelo rabo”!
Minha sogra tinha um carrinho, também velhinho, porém mais fácil e rápido de vender no mercado. Aceitou a demanda e, no dia seguinte, trocamos os “enguiços” e peregrinamos pelas tantas concessionárias de Belo Horizonte “À Procura de um Milagre”! E eis que a água se transformou em vinho.

Com o dinheiro na mão, o próximo impasse era a escolha do nome do neném. Com essa não contávamos! Tínhamos que comprar a passagem já com seu nominho, mas estávamos com apenas 3 meses de gravidez, não sabíamos o sexo, quer dizer, oficialmente pelas vias ultrasonográficas, porque intuitivamente já o chamávamos de menino. Mas, e se a intuição tivesse mal sintonizada? A nossa menininha ia chamar Ravi?

Como correr riscos já vem registrado nos “samskaras” dessa família, esse seria só mais um para incluir na nossa “cota de karmas”. Compramos as passagens e aí começa outra estória.

Cris

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

"Encalços e percalços"

Quando criança me ensinaram que na vida eu precisava ter força. Mas acho que esqueceram de me dizer apropriadamente o que era a referida. Bom, eu tinha um modelo em casa, que talvez seria o natural de se seguir. Mas acontece que o tal modelo, agora que tenho mais informações para poder analisar, não era assim tão adequado à idéia que hoje faço a respeito de força. Sabe autoritarismo? Pois é, acho que tava mais para isso. É íncrivel como as pessoas confundem autoritários com fortes. "Nossa, fulano é tão forte", e o que vemos é uma pessoa toda armada, botando ordens e morrendo de medo de se relacionar de outra forma.

Mas, voltando à bendita força, precisamos cavá-la muitas vezes nessa viagem. Situações complicadas, nas quais os ânimos deveriam se manter sob controle para tomarmos as decisões certas, para aguentarmos as turbulências das longas trajetórias, os saculejos sobre as pedras do caminho (rsrsrss... literalmente falando).

Para começar, Bombain. Quem conhece que não te compre. Portal de chegada. Mamãe urso e mais três pequeninos indefesos da prole. O mais confiante e seguro era o Ravi, o neném de três meses que não tinha idéia da metade da missa que estavam lhe enfiando goela abaixo. Na verdade, Ravi curtiu demais tudo. Talvez quem mais curtiu, pois não passou diretamente por nenhum perrengue. Só passeando na "cacunda" do papai e da mamãe, nosso caracolzinho em sua casinha ambulante. Admirando as árvores ("arvrrr"...) que adora, com seus olhinhos gigantes e brilhantes percorrendo diversas paisagens e rostos diferentes.
E, ao falar nesses rostos diferentes, lembrei de um perrengue pelo qual o Ravi esporadicamente passava. A forma como os indianos e nepaleses pegam as crianças no colo e jogam elas para cima é de congelar o nosso coração! No início, passava por essa adrenalina constantemente. Eles adoram as crianças, acham que são verdadeiros deuses e por isso querem sempre tocá-las, como se recebessem bençãos fazendo isso. Após algum tempo de experiência, fui ficando mais esperta e sabia dar um jeitinho de despistar e poupar o Ravi dos arremessos sem ofender os brios de ninguém. Bom, esse foi o drama pessoal do Ravi durante a viagem, seu bom combate. Na verdade digo isso, mas quem ficava com os olhos arregalados, as pernas bambas e o coração acelerado eram os pais que tinham um certo discernimento. O danadinho morria de rir da situação.

Voltando às nossas pelejas, estas começaram mesmo muito antes de botarmos os nossos pezinhos em Bombain. Sabe a mulher quando fica grávida pela primeira vez e se tivesse noção da dor do parto, talvez por medo teria evitado engravidar? Pois é, quando decidimos viajar, não tínhamos idéia da dor do parto, ou melhor, dos partos, pois foram mais de um.

Primeiro parto: documentos! Os meninos (aqui me refiro ao Rodrigo e ao Damião, seu irmão) eram indigentes. Simplesmente não existiam nos arquivos do sistema. O Rodrigo ainda tinha carteira de motorista, pelo menos. Mas só isso. Tive que promover o renascimento deles na sociedade. Falo de mim porquê fui eu mesmo que tive que administrar isso, pois como haveria de cobrar isso deles? Era como soltar dois neandertais na Avenida Paulista. Dois marmanjos sem documento e sem "identidade" própria ( isso seria uma ironia se não fosse verdade nesse caso, pois eles não tinham identidade mesmo, a famosa C.I. que até indigente tem. A Flora com 11 já tinha.)


Sabe o filme "Família Buscapé"? Lembrava sempre dele nos compromissos burocráticos, quando íamos requisitar nossos "papéis" na Receita Federal, Justiça eleitoral, e por aí vai. Era muito engraçado quando observava sob a perspectiva de quem está de fora vendo nossa família toda, pois saíamos em comboio, esperando nas filas do Estado. A família busca pé - de- chinelo. Sem combinar, éramos todos os "com chinelos de dedo" em meio aos "com ternos e gravatas". Isso por si só já nos garantia muitas risadas.


Outro parto: dinheiro. Quem dera fosse fácil assim: resolvemos ir, tiramos o dinheiro da nossa rica poupança e pagamos as passagens. Ou ainda: nossos pais "bem -de-vida", resolveram acreditar na próspera carreira dos "malucos", e bancar nossa "pós-graduação" no exterior.

Bom, imprudência, maluquice, irresponsabilidade ou seja lá qual for o diagnóstico de nossa conduta, fato é que a resolução de irmos veio antes dos meios necessários para conseguirmos. Isso significa dizer que não tínhamos dinheiro suficiente nem para comprar as passagens, na verdade, nem para pagar toda a papelada que precisava, muito menos para nos manter lá por um período.

Tínhamos um carro velho e guerreiro, ou melhor seria dizer, uma carroça ( já famosa pelos mil enguiços) e muita vontade, quase uma certeza, insensata, baseada em coisa nenhuma palpável, a não ser no nosso próprio "achismo" de que deveríamos ir.

Se estava no nosso destino, escrito nas estrelas, ou qualquer coisa parecida que normalmente se diz quando falam de sonhos, não sei dizer. Mas com certeza o universo conspirou bastante para realizarmos. A favor e contra também!

Mas, o desenrolar dessa dinâmica de conspiração contra e a favor do universo vou deixar para contar depois pois esta postagem já está muito grande. Aliás, acabamos de resolver que vamos iniciar uma série de postagens só sobre os perrengues. Lembramos de vários que, como todo drama, possuem um alto potencial para ser engraçado... Agora, depois que já passou!

domingo, 23 de agosto de 2009

The nepali monk(ey)

"Fulano tem macaquinhos no sótão!" Acho que todo mundo já ouviu essa famosa expressão. Os macacos são popularmente relacionados aos miolos desaparafusados, à confusão e baderna mental. A sabedoria popular e as escrituras indianas se referem à mente (citta) como uma macaca agitada, pulando de galho em galho freneticamente.


Macacos nunca poderiam nos passar a imagem da equanimidade ou quietude, mas encontrei uma exceção no Swayambhunath temple, no nepal, curiosamente conhecido também como templo dos macacos. E como "o hábito faz o monge", acho que o macaco aprendeu a meditar, pois estava sentado e parado nessa posição durante muito tempo, como congelado. Ouso dizer que poucas pessoas podem ficar tão quietas num asana como este macaco, lembrando aqueles macacos brancos japoneses que ficam horas relaxando na água quente das termas naturais. Mas o macaco desta história não estava em nenhum ofurô natural para estar tão bem. Repare na profundidade de sua expressão, impassível como uma montanha.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O macaco galanteador

Um dia estávamos na trilha voltando para nossa casinha em Rishikesh quando resolvi sentar numa "mureta" de pedra para observar um macaco grande que vinha andando de longe sobre ela, num passo tranquilo e solitário. Foi quando após alguns minutos, sentada observando, reparei que o macaco estava vindo em minha direção. Pensei em sair antes que se aproximasse pois, afinal, tratava-se de um macaco de cara vermelha, que tinha fama de ser agressivo e nada amigável. Mas, ao invés de ceder ao primeiro impulso, acabei permanecendo, mesmo porque o macaco já estava perto demais para fazer qualquer coisa.
















E não é que o dito cujo sentou bem do meu lado, agarradinho no meu corpo, e lá ficou??? Não pude acreditar no que presenciava, sentia uma mescla de medo com satisfação, na expectativa de qualquer desfecho, trágico, cômico ou até mesmo romântico, nas perspectivas do macaco. E não poderia ter sido mais engraçado. O macaco "safado" (como disse o Rô), em uma atitude completamente inesperada, surpreendeu a todos, principalmente a mim, quando colocou seu braço sobre a minha perna e sua mão sobre a minha. Queria muito morrer de rir naquela hora, mas permaneci estática, paralisada, sem saber qual poderia ser o próximo passo dele. Não podia sair, porque ele poderia se sentir rejeitado, sei lá, e ficar zangado e querer me atacar. Também não podia corresponder ou ficar muito receptiva ao toque pois ele poderia querer me beijar, imagina isso?





Fiquei somente quieta, experienciando aquele momento. O que poderia estar passando pela cabeça daquele macaco naquela hora? Cheguei a especular isso enquanto estava sob "seu comando". Estava sendo aquilo uma espécie de encontro ou algo parecido? Eu era a macaca escolhida, ou somente sentou porque estava cansado e encontrou companhia de alguém que estava em seu caminho? Nunca vou saber.


Depois de algum tempo, não sei quanto, pois foi daqueles momentos em que perdemos a noção, ele simplesmente se levantou e saiu andando com seu passo tranquilo. E eu, sã e salva, pude rir demais daquela situação. Acariciada por um macaco indiano! E acho até que posso me sentir lisonjeada, pois não se tratava de um macaco qualquer, daqueles magrelos e arruaceiros que estávamos acostumados a encontrar. Era um macacão forte, robusto, com um ar sereno e uma postura de macaco vivido, experiente, caminhando sozinho, desprendido da vida do bando. Certamente um bom partido para as macaquinhas de Rishikesh.



Macacos


Macacos de poeira já voaram
Macacos de poeira já voaram
Macacomanusacuma sacomanunsaco
Macacos de poeira já voaram
Macacos de poeira já voaram
Macacomanusacuma sacomanunsaco
Macacos de poeira já voaram
Macacos de poeira já voaram
( musica Macaco "corpo" de Naná Vasconcelos)

Os amarelos safados e ladrõezinhos


Para quem não sabe, além das vacas e ratos que rodam pelas ruas imundas da índia, há também os espertos macacos que vivem em todos os lugares a espreita esperando um bobo passar com comida para eles CREU! Darem o bote. Pelo menos em Rishikesh, aonde fiquei, a maior concentração dos macacos amarelos e híper inteligentes se localiza na ponte laxmanjula. Lá é aonde todas as pessoas passam correndo para não serem roubadas. Quantas milhões de vezes não ouvimos: " muito cuidado ao andar na ponte, esconda as sacolas e não passe andando com comida" ou então " não se preocupe com os macacos brancos e sim com os amarelos de cara vermelha, eles são agressivos e podem te machucar". Para falar a verdade, nunca vi eles machucando ninguém, mas não descarto esta possibilidade, pois eram bem agressivos mesmo.



Os doces langurs


Para compensar os irmãos amarelos, os langurs eram as criaturas mais calmas e doces que já vi. Sua coloração era branca e sua cara era preta, além de simpático ainda era um lindo animal. Os langurs, diferentemente dos outros macacos, ainda viviam (a maior parte deles) no resto de mata que havia nas montanhas que rodeavam a pequena cidade de Rishikesh e, por experiência própria, digo que é muito legal presenciar a bagunça e a barulhada que fazem na floresta, apesar de muito calmos e serenos na cidade. Como são muito agradáveis, eles nem precisam roubar, pois ganham tudo de graça! hahahahahahahaha. Mas não vou deixar esta imagem ruim dos pobres macaquinhos amarelos, afinal, é da natureza deles serem bagunceiros e também, eles não tem comida né? Rsrsrs. Os macacos amarelos também eram muito divertidos.


Tatá e suas macacadas

Parte um: Vó maria e tatá (minha irmãzinha de três anos) estavam assistindo um programa na TV no qual os macacos na Índia faziam cocô na cabeça dos convidaos de um casamento. Vó Maria(minha bisavó), sabendo que iríamos pra lá, logo falou:-viu tatá, lá na Índia os macacos fazem cocô na cabeça das pessoas! E a tatá ficou com isto na cabeça...


Parte dois: Depois disso, todos que perguntavam a Tatá se ela ia para a Índia, ela dizia:- eu não! Os macacos vão fazer cocô na minha cabeça! E a pessoa ria até não aguentar mais.Tatá ficou com o pensamento fixo de que não iria pra Índia porque os macacos fariam cocô em sua cabeça, chegou até a chorar porque não queria ir.

Parte três: Quando Tatá chegou na India ficou adimirada com os macacos , só com um pouquinho de medo dos cocôs. Mas com o tempo foi se acostumando com eles e passando a achá-los legais e divertidos, até aquela quinta feira de tarde...


Um belo dia, (a tal quinta feira) Tatá comprou um pirulito, foi andando com ele até a ponte e, quando estava atravessando, um macaco foi lá "destrai-la" e em um segundo por traz arrancou o pirulito das mãos de Tatá. Tatá, viciada em pirulito, ficou chorando uma hora porque o macaco tinha roubado seu pirulito e uma nova birra com os macacos se formou no coração de Tatá. Mas graças a deus esta birra acabou em poucos instantes, pois logo ela comprou outro e falou: " eu fiz uma idéia: eu dou o meu pirulito pro macaco e pego o dele!", kkkkkkkkk! Uma peça rara, não?


Flora