segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Nada no Lago



Não sei dizer o porquê, mas essa viagem à Índia e Nepal me remete a muitos sonhos de infância e princípios de juventude. Parece que muitas imagens já estavam programadas para acontecer. É como se a idéia estivesse escondida lá no fundo dos quintais da mente, e quando as cenas se desenrolam por aqui, é familiar como se eu estivesse vendo um filme embaçado. Mas não estou me referindo à lembranças de vidas passadas, que é um "lugar comum" nos relatos de experiências das pessoas que se interessam ou que vão à Índia. Na verdade, estou cansado desse papo de "acho que já vivi na Índia no passado", ou "já tive alguma encarnação na Índia". Esse tipo de especulação já é tão "batida" e repetida que às vezes dá até uma certa preguiça de conversar com as pessoas "místicas" que se interessam por Yoga e cultura indiana. Afinal, quem é que não reencarnou na Índia? A esmagadora maioria das pessoas que transitam no "mundo" do Yoga já. Eu mesmo conheço milhares de "Yoguis reencarnados".

Quando falo de imagens familiares, estou falando de algo que faz sentido para minha vida, e de minha família. Talvez sejam familiares porque na Índia e no Nepal, mais do que nunca, temos liberdade absoluta para sermos nós mesmos. Estando sem trabalho e sem obrigações que não sejam os deveres a que nos propomos, estamos livres de regras impostas pelos outros ou pelas situações e, sendo assim, ninguém nos coloca obrigações sem nossa vontade ou permissão.

Teve dias em que realmente me recusei a ser submetido a qualquer tipo de ordem ou regra, enquadrar-me em qualquer tipo de compromisso ou ficar preso em qualquer armadilha de horário ou tempo. Dia de subir montanha, dia de ficar no Ganga, de ficar com as crianças na praia de areia branca. E um desses inesquecíveis compromissos comigo ou conosco mesmo eram os maravilhosos entardeceres do lago Phewa no Nepal.


Quando pegávamos o bote, passávamos toda a tarde no barco, após o almoço até o anoitecer. Às vezes almoçávamos no próprio barco, levando lanche para um pic nic. Dias de ócio criativo, de ficar deitado olhando o formato das nuvens que às vezes aparecem nessa época como lençóis, que vão tingindo-se de cores à medida em que o sol vai mudando sua posição no céu. Dias de observar a revoada dos pássaros aquáticos. De ficar no meio do lago a deriva, já que o lago quase não tinha corrente e o seu ritmo também era preguiçoso.

Ravi sempre dormia entre as mantas e xales que levávamos pois, apesar do sol, ainda era bem frio e ficava gelado no final da tarde. Estávamos em pleno inverno do Nepal. E Damião virou o remador de todas as horas, pois pegou logo o jeito dos difíceis remos do bote nepalês, tão diferente das canoas e caiaques nacionais, ou pelo menos aos que estávamos acostumados a usar nas baías de Angra.




Uma vez aportamos no lado selvagem do lago e vimos uma manada de bois e búfalos, como também currais de pesca bem primitivos próximos à margem. Em outra oportunidade, a viola e a cantoria também fizeram parte da embarcação. Mas, basicamente, o melhor era mesmo ficar à toa, olhando para as nuvens.



O lago era o local onde digeríamos as experiências da viagem, onde conversávamos a respeito do povo, das diferenças culturais, do estrago que a vida moderna faz no mundo das pessoas e nas vilas. Mas, principalmente, era na placidez do lago que podíamos planejar com tranquilidade os próximos "saltos" e "vôos" e definir para onde iríamos a partir dali, já que sempre voltávamos para Pokhara após viajar para alguma vila ou cidade. Lá era nosso pouso, o porto seguro onde podíamos nos preparar e descansar antes de pegar novamente a estrada. E era no lago que decidíamos e calculávamos os prós e contras de cada aventura, os riscos e valores de cada loucura. Era lá que, renovados, sentíamos que poderíamos ir para qualquer lugar, pois nada nos limitava. Muito ímpeto para viajar e conhecer, crianças fortes que aguentavam o "tranco", e principalmente a união do grupo, onde todo mundo falava a mesma língua.

Dentro do barco, viajávamos em nossas especulações. Se iríamos para uma vila devotada à Deusa Kali, ou se íamos para um parque andar de elefantes e ver vida selvagem. Conhecer templos ou ir para as montanhas; peregrinar pelas rotas sagradas ou alugar uma casa nas vilas e passar um tempo vivendo como os aldeões. Lá escolhíamos qual seria a rota que poderia proporcionar mais conhecimentos e experiências para os adultos e crianças da trupe.

Mas o lago não era só um local de decisões e conversas. A natureza ao redor é maravilhosa, pois é cercado por montanhas cobertas de verde, e grande parte é quase selvagem e ainda não habitada pelos homens. A partir de dois longos canais ele é ligado a dois outros lagos menores, ainda mais selvagens. A margem que é circundanda pela cidade também é linda, pois o nepalês, bem mais esperto que o indiano, cuida para manter os jardins públicos ao redor limpos e bem bonitos.



Nunca posso esquecer que foi no lago que vimos os himalaias pela primeira vez de forma satisfatória. Na Índia e Nepal, durante o inverno, impera uma bruma constante no ar e, dependendo do horário, muitas vezes fica bem difícil de enxergar em maiores distâncias ou ter uma visão clara das montanhas. Quando estivemos pela primeira vez no meio do lago, tivemos a visão dos himalaias alaranjados pelo pôr do sol, atrás das montanhas verdes, e essa foi a primeira vez que tivemos um vislumbre decente pois, até então, só víamos a ponta do pico Machapucchare e pedaços insignificantes dos outros picos da cadeia. Depois até tivemos a oportunidade de visões magníficas das cadeias montanhosas, mas aquela imagem foi a primeira e, por isso, marcante na viagem.

O desejo de conhecer o lago Phewa foi certamente uma das maiores motivações para interromper os estudos na Índia e ir para o Nepal e também um dos motivos principais pelo qual preferi o Nepal à Índia, apesar de no Nepal não ter desfrutado de estudos formais.

Apesar de nosso carinho e veneração especial pelo rio Ganga, o Phewa Tal, antigo lago sagrado para os povos que viviam na região de Pokhara no passado, acabou assumindo ares de sacralidade para nós também , sobretudo o sagrado compromisso com a mente livre, leve e solta.