quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O enfeite do presépio

Vinho tinto e rosado
Bacalhau ensopado
Figos secos, castanhas, rabanadas, avelãs
E um pinheiro enfeitado
Com bolotas brilhantes
E cordões prateados
Os presentes pelo chão
E algodão imitando a neve branca e real
Meia-noite de natal
Os sorrisos explodem
As champagnes explodem
As pessoas se abraçam com seus braços de algodão
Todo mundo cantando, os presentes se abrindo
É momento de grande, grande realização
Meia-noite instantânea , muita boa vontade
Nesta noite de natal
Já chegou Papai Noel
Oh yeah

A letra desse irônico rock do Som Imaginário (grupo que acompanhava Milton Nascimento no comeco dos 70), descreve tudo que gostaria de expôr a respeito da artificialidade do natal.

Qual é o real significado desta festividade?

Não é extremamente hipócrita que seja ainda considerada como uma festa cristã?

O que há de cristianismo no natal? O presépio ?

Se observarmos as raízes do culto cristão, ou o que a história convencionou chamar de cristianismo primitivo, poderemos observar que inicialmente existia um núcleo de conhecimentos, provavelmente oriundos de Jesus e passados adiante pelos seus discípulos através da tradição oral. Jesus não fundou uma igreja, tampouco uma seita ou religião. Não ordenou monges ou sarcedotes, apenas usou seu tempo fazendo o bem e falando de amor universal, perdão incondicional, a importância da verdade e de se evitar a hipocrisia no trato com o divino.

Não precisa ser nenhum gênio para perceber o quão engenhosa e inventiva foi a igreja católica para conseguir criar uma mega estrutura burocrática e poderosa, a partir das singelas e profundas parábolas de Jesus.

O aspecto mais nefasto dessa história é que no inconsciente coletivo, Jesus e seus ensinamentos, os apóstolos e seus atos, viraram sinônimo de igreja católica. A imagem de Jesus ficou incondicionalmente relacionada à igreja, que dele se "apropriou", ou então ficou vinculada ao protestantismo e às mil seitas que surgiram nos tempos atuais.

Essa "aliança" forçada criou o inconveniente de produzir entre as "camadas pensantes" da sociedade um repúdio geral à imagem e até aos ensinamentos de Jesus. Quer dizer, como a igreja passou dois milênios tentando dissociar a fé, o espírito religioso do pensamento e da ciência, no momento em que o conhecimento humano começou a realmente se desenvolver - a partir do renascimento e especialmente depois da revolução francesa e revolução industrial - a religiosidade, espiritualidade ou qualquer sentimento relacionado ao sagrado ou divino foram excluídos do desenvolvimento do pensamento científico e filosófico.

Durante dois milênios a igreja tomou a frente dos rumos do mundo ocidental e se arvorou a explicar do seu jeito todas as questões da vida e do universo, combatendo ferrenhamente todo tipo de ciência, doutrina, filosofia ou teorias, ignorando a contribuição que outras formas de pensamento poderiam trazer à evolução da civilização ocidental.

Quando a ciência começou a se desenvolver e encontrar explicações diferentes para os mistérios da vida, houve um inevitável divórcio entre a ciência e a religião. Coisa impossível de acontecer na Índia, onde a razão nunca foi colocada de lado, fornecendo bases filosóficas ao sentimento religioso. Quando digo isso, obviamente me refiro ao sentido gnosiológico do hinduísmo, e não aos aspectos mais populares do culto.

Noto que não é apenas nos meios científicos ou intelectuais, mas também no meio do Yoga há um grande repúdio à figura de Jesus. Creio que isto é culpa da mancha indelével que a igreja católica deixou em sua imagem e nas manipulações e interpretações errôneas de seu pensamento. Se buscarmos a essência dos ensinamentos do homem santo e, principalmente compreendermos que as igrejas, católicas ou protestantes, não possuem direitos ou exclusividade sobre Jesus, ou seja, não são donas de sua herança (isso principalmente, pois não representam em absoluto sua mensagem), poderemos então "aceitar" Jesus simplesmente como mais um grandioso mestre espiritual, incorporando em nossas vidas seus principais ensinamentos e até mesmo os já tão manipulados evangelhos oficiais, como shastras ou escrituras de conhecimento, desde que através do bom senso, seja feita uma triagem do que é coerente e do que não é, do que foi manipulado ao longo da história e do que representa os ensinos reais de Jesus. "Separar o
joio do trigo".

A respeito dessas manipulações e desse sentimento de posse, me lembro de outra irônica canção do Marcos Valle que diz assim: "Jesus meu rei, fazendo lei, peçam que faça e ele faz". Quer dizer, Jesus sempre foi um fantoche nas mãos dos pastores e padres, que "falavam por ele" expondo "seus desejos" e "vontades", fazendo assim a lei que quisessem.

Eu ia escrever sobre isso no natal passado, quando estava em Rishikesh, mas fiquei com preguiça de ir até uma lan-house. Naquele natal, fomos convidados por amigos nepaleses para fazer uma ceia natalina. Eles mesmos nem ligam para isso, são de famílias budistas e essa festa não representa nada para eles (assim como para nós), mas achamos muito bacana a atitude deles de fechar o restaurante, bancar um jantar, comprar presentes e confraternizar. Fiz uma feijoada vegetariana (pois insistiram que deveria ser um prato brasileiro) e eles amaram. Compraram whisky no mercado negro de Rishikesh, trouxeram tambores (acabou indo toda a comunidade nepalesa da cidade) e foi um festival de danças típicas e histórias das vilas do Nepal, com todo mundo brincando e dançando como crianças. Um ótimo prenúncio de viagem, pois iríamos para lá logo depois. Esse foi certamente o natal mais legal e diferente que tivemos na vida, com o acréscimo da benção de não ver pelas ruas a decoração baranga típica de natal. Espero ter ainda muitos natais nepaleses ou indianos.

A despeito de tudo isso e de minha repulsa pelo comercialismo do natal, fizemos nesse ano uma árvore para nossa pequenina. Ela adora papai noel e outras firulas natalinas. Sentamos todo mundo com material de arte, tesouras, papéis, isopor, tintas, canetinhas, pincéis e fizemos todos os enfeites de forma artesanal, evitando assim contribuir ainda mais com a indústria do natal. A ceia, como em todos os outros anos em que estamos juntos, não teve nenhum daqueles pratos típicos dos quais não gostamos. Os presentes não teve jeito, tivemos que comprar mesmo. E fizemos as pegadas de cinzas do papai noel saindo da lareira e indo em direção à árvore. Por causa das crianças fizemos concessões que só podem ser feitas dentro do "espírito natalino".

Nota: não temos fotos da festa nepalesa-natalina pois no dia seguinte, um rapaz indiano que pediu para olhar nossa câmera, futucou vários botões e acabou apagando mais de trezentas fotos da viagem, deixando como lembrança natalina apenas uma, a dele mesmo que ele fez questão de tirar segurando a câmera apontada para si mesma. Quis deixar essa foto como recordação cômica, mas minha filha mais velha achou o cúmulo e apagou.