terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Um trem errado para um destino certo

Tem coisas que só os indianos fazem por você. Tudo bem que sou implicante, intolerante e talvez petulante, mas qualquer pessoa que já foi à Índia sabe que não exagero quando digo que não pode existir na terra um povo mais obtuso e sem noção para dar informações a respeito de qualquer coisa, do que os indianos. Nem o mineiro, um cidadão classicamente desorientado, consegue competir, pois os caras não sabem mesmo te dizer onde fica o próprio umbigo. Para piorar a situação, seja por gentileza, segundo crêem os bondosos, seja por vontade de sacanear os "westerns", eles parecem não saber pronunciar as palavras : "não sei onde fica", ou simplesmente "não sei", e resolvem sempre te dar uma informação, independente de saberem ou não sobre o que estão falando e sem pensar nas consequências desse ato. Mas o fato é que quase sempre, com raríssimas exceções, se você perguntar para um indiano uma informação sobre como ir a algum lugar, ele vai te dar a dica ou a direção errada.

Seja qual for a intenção dos indianos naquele dia, o fato é que eles "atiraram no que viram, mas acertaram no que não viram", pois com suas repetidas informações erradas, tão iguais que pareciam combinadas, acabaram nos mandando para um de nossos mais venturosos destinos nessa viagem à Índia.


Estávamos ainda cansados das nossas andanças pelas montanhas e das correrias para subir e descer nos trens lotados, e mesmo com uma noite boa de sono num hotel em Mumbai ( bom, já está explicado, pois não pode haver satisfação e humor que resistam àquela cidade ), até o pacato Damião estava com o estopim curto. Após três tentativas frustradas de receber a atenção da funcionária do guichê da estação ferroviária, que estava mais preocupada em comer o seu "chicken masala", ele se "empombou" e disse-lhe que ela não estava fazendo nenhum favor especial em atendê-lo, que era o serviço dela e ele estava pagando o ticket, logo ele precisava que ela fizesse o seu serviço e lhe desse uma informação segura. A mulher irritou-se e deu-lhe a passagem finalmente dizendo qual era o número da plataforma onde pegar o trem.

Não havia mais tempo para questionar a respeito da falta de números e informações no bilhete, estava no horário do trem sair, e a funcionária do guichê tinha dito e reafirmado que era aquele mesmo, então era melhor colocar "sebo nas canelas". Corremos para o trem e encontramos o vagão que coincidia com o único número escrito em nosso estranho bilhete.


Já na porta perguntamos a um senhor com "ar" de mais esclarecido, se falava inglês e ao ouvi-lo confirmar, perguntamos se aquele trem ia mesmo para Haridwar, cidade mais próxima de Rishikesh, nosso destino final, e diante de sua resposta afirmativa entramos no vagão.


Desconfiado por já conhecer a famosa desorientação indiana, falei ao meu irmão que tentasse perguntar para mais umas duas pessoas se realmente aquele era o trem. Fiz minha parte e perguntei a um casal se aquele era o trem que ia para Haridwar, e eles questionaram em hindi a um senhor sentado ao lado, e todos eles confirmaram que o destino final era Amritsar, mas que o trem parava em Haridwar, situada no caminho. Consultamos o guia de trens e horários que tínhamos comprado na estação, o mesmo que os indianos usam, e não conseguíamos ver lógica no trajeto. Para piorar, a numeração do trem era muito louca, e o nome da cidade de destino escrito no trem era Amritsar mesmo, mas não dava para confirmar se parava em Haridwar. Embora as duas cidades não fossem tão longe assim, parecia que eram doze horas de viagem de uma cidade para a outra. Com o guia na mão, resolvi andar até o outro vagão, para não ser indelicado com as pessoas que tinham nos dado informações, demonstrando desconfiança. No outro vagão, parei um rapaz da companhia que servia lanches, e lhe questionei, mostrando o mapa das linhas de trem da Índia, se aquele era realmente o trem que ia para Haridwar, e se era, porque eu não encontrava aquela linha e horário no guia. Ele me disse secamente que aquela era uma linha nova, que constava em outro guia, de outra rede ferroviária, e questionado por mim a respeito dessa informação, disse que tinha certeza do que dizia.


Diante de tamanha demonstração de segurança do funcionário, e mesmo com nossa tradicional desconfiança mineira, resolvemos deixar de cismar. O trem estava cheio de figuras diferentes, personagens típicos da Índia que até então não tínhamos tido oportunidade de ver na já tão ocidentalizada Mumbai, e seria melhor aproveitar a viagem, observar os homens com roupas de renunciantes, as figuras com indumentária de sadhu, alguns muçulmanos vestidos à caráter, todos aparentemente tão curiosos em relação à gente quanto nós em relação a eles.

Amritsar era uma das cidades que tinha muita vontade de conhecer. Terra natal do querido amigo sr. Narinda, sikh radicado em nossa cidade há 15 anos e uma figura muito especial.


A cidade se situa muito próxima da fronteira do Paquistão, sendo assim, mesmo sem querer, assimilou bastante coisa do vizinho.


A religião sikh sempre foi meu objeto de interesse, por ser completamente diferente de outras formas religiosas na Índia, uma religião que de certa forma assimilou elementos do hinduísmo e islamismo, mas que porém adquiriu sua própria expressão, de cunho monoteísta e fraternal. Pregam a igualdade entre os homens e rejeitam o sistema de castas.


A partir da quarta ou quinta parada, começaram a subir no trem alguns sikhs, e eu fiquei intrigado com um senhor com indumentária de "guerreiro" ou de guarda que sentou no banco abaixo de nós, com duas espadas embainhadas, um punhal, e alguns dos símbolos da religião sobre o turbante. Fiquei tentado a descobrir o motivo específico da roupa, mas na dúvida e no receio de uma má recepção à pergunta (apesar dos indianos sempre serem receptivos ao diálogo) preferi ficar como voyeur, espionando o senhor, observando seus atos, estudando e comparando com os outros indianos. Analisava cada ação deste senhor, pois não dava para ver a paisagem de onde estava, e sendo assim, não tinha mais nada para fazer a não ser ler o enfadonho e careta Lonely planet. Percebi que ele foi o único a lavar as mãos - usando água do seu cantil, despejando pela janela do trem - e comia de uma forma muito comedida e meticulosa, sem se lambuzar como os outros. Também foi a única pessoa que não conversava, parecia taciturno, mas mais que isso, passava uma imagem, uma "aura" de sabedoria, ou pelo menos de tranquilidade adquirida através da experiência de vida. Não conversava com ninguém, mas não parecia ser por se sentir melhor que os outros, mas simplesmente por não se interessar pela conversa corriqueira, aparentemente banal, dos outros passageiros.






Observava o homem olhando pela janela e ficava imaginando o que se passava pela sua mente. Como deve ser pensar da forma de outra pessoa, tão diferente de nós? Como deve ser o desenvolvimento do pensamento de um senhor sikh? Certamente o pensamento daquele homem deveria ser diferente do único outro sikh que eu conhecia, o sr. Narinda, um dócil e pacato comerciante de gemas, pedras semi-preciosas e artigos asiáticos. Pensava que talvez sua visão alcançasse a paisagem lá fora e, reconhecendo lugares familiares, talvez comparasse com a Índia de sua infância e mocidade, tão diferente da atual.



Refleti que talvez toda essa minha especulação sobre os pensamentos do senhor fossem uma grande bobagem, e ele estivesse apenas pensando em qualquer coisa, mas com uma expressão séria que acabava lhe conferindo uma imagem de sábio e comedido. Mas ainda intrigado com sua figura, fiquei observando por mais tempo. Esperando o melhor momento para tirar algumas fotos sem ele ver, morrendo de medo das espadas, pois vai saber que tipo de louco podemos encontrar.


No meio do caminho, resolvi conferir mais uma vez, com alguns senhores sikhs que estavam embarcando numa parada, a respeito do destino e do trajeto do trem, e um deles me garantiu que este trem não passava por Haridwar. Chamando um gerente da estação que estava próximo, conferiu com ele e os dois me garantiram que realmente não passava, e que eu deveria descer em (não me lembro o nome da cidade), se quisesse pegar um outro trem para Haridwar, pois esse era o ponto mais próximo em que o trem passaria. Fiquei furioso (implodindo por dentro) com os indianos, comigo mesmo de ter confiado e com a mulher da estação, que se vingou de ter sido cobrada pelo meu irmão. Aquela regra de ouro de não brigar com o garçom que serve sua comida, para evitar represálias, também servia para os atendentes de guichê de tickets.

Tinha de pensar numa solução rápida, pois eu só tinha uns poucos dias para chegar em Rishikesh, arrumar uma casa e voltar para Mumbai para receber a Cris e as crianças. Amaldiçoei a resolução de primeiro estudar no sul para depois ir para o norte. Se nossa passagem de ida e volta era por lá, era melhor ter deixado as aulas no sul para o final da viagem - pensei aborrecido. Mas a programação dos cursos conferia perfeita com o período em que eu estaria sozinho na Índia e, além disso, pensava que o calor estaria muito insuportável no final da viagem, fato que confirmei ser correto quando voltei ao sul para ir embora. Marinheiros de primeira viagem que éramos, achei que seria necessário, em consideração às crianças, ter esse cuidado de conferir cuidadosamente a cidade em que passaríamos mais tempo, lugares para habitar, comer ,etc, então resolvi ir até Rishikesh e voltar depois para buscar a Cris. Que loucura essa idéia, e que odisséia cansativa que havia se originado a partir dela, especialmente agora estando no trem errado. Mas todas as possibilidades já tinham sido estudadas anteriormente e realmente essa era a única solução mais viável. Só tínhamos esquecido de um fator, bem preponderante: "no meio do caminho tinham uns indianos, tinham uns indianos no meio do caminho"


Com a cabeça cheia de especulações sobre como proceder, desci na estação da cidade que correspondia a bifurcação da linha para conferir rapidamente se havia outro trem no mesmo dia, pois se fosse para dormir numa "cidade muquifo", preferia tentar a sorte em Amritsar mesmo. O trem parava de um lado da estação, mas descobri que o guichê que eu precisava ficava do outro lado das linhas, e tinha que pegar uma passarela entupida de gente e caixotes. Só tinha uns quinze minutos para toda a operação, então resolvi deixar meu irmão com as coisas no trem e correr como um doido atravessando pelos trilhos mesmo, pois seria a única opção.


Jamais imaginei o quão largas pareceriam aquelas três pistas de trem que me separavam da plataforma. Uma jornada por uma vastidão apocalíptica com oceanos de cocô e urina humana, misturado com lixo, ratos, moscas e grandes poças de óleo escorregadio.


Tínhamos andado a pé por trilhos de trem, em regiões entre cidades, onde não são exatamente limpos, mas nada se compara a imundície das estações, pois é quando a grande maioria dos passageiros vão ao banheiro, e onde todo mundo joga tudo que se tem de lixo dentro do trem pela janela, direto na vala dos trilhos.


Recitei mentalmente o salmo 23, aquele que diz algo mais ou menos como : "ainda que eu ande pelo vale das sombra e da morte", e encarei a tarefa de atravessar. Quando cheguei à plataforma do outro lado, encontrei o de sempre: filas e mais filas com gente furando por todos os lados e aquela desoladora paisagem humana com mil informações erradas para me dar e encrencar ainda mais minha vida.


Tentei inutilmente de todas as formas me aproximar de um guichê para tentar descobrir quando era o próximo trem, mas não havia jeito. Quando me toquei do horário, tinham se passado uns treze minutos ou mais. Aterrorizado com a hipótese de perder o trem, comecei a correr no meio do tumulto. Ao avistar o trem, vi meu irmão ao longe, na janela descabelado e desesperado fazendo sinal e gritando, e então ouvi o sinal que o trem ia partir.

Sabe aquela história de rever toda a sua vida antes da morte? Pois é, antes de me atirar naquele fosso do fedor eterno, revi em minha mente em frações de segundo, vários momentos felizes: minha cama limpa, o chuveiro de minha casa, sabonetes e desinfetantes que antes eu desdenhava como excessivamente químicos. O que eu não daria para que toda aquela imundície se transformasse num mar de desinfetante, com toda sua química maligna. Eu até chafurdaria com prazer nesse lago de química anti-séptica.



É difícil descrever com exatidão a cena ridícula de uma pessoa segurando o chapéu e correndo
desesperadamente pelas linhas de trem, saltitando entre montes de bosta da mais fedorenta que se possa imaginar. Lembro de ter tido o miserável pensamento de amaldiçoar toda comida indiana do mundo, com seus litros de óleo e temperos fortes. Lembro de ter amaldiçoado todos os informantes e filas indianas; lembro até mesmo de ter amaldiçoado a mim mesmo por trocar o conforto dos livros da minha biblioteca por aquele empreendimento maluco de pesquisa antropológica e estudos. O que eu estava fazendo naquele lugar patinando no óleo com titica humana e correndo como um louco para pegar o trem?


O trem começou a andar e vi o rosto tenso de meu irmão começando a se mover com o andar do vagão. Comecei a correr mais ainda, desesperado, e, quase tropeçando nos pedregulhos do chão, me alinhei com o trem em movimento, tentando encontrar um apoio seguro para tentar subir. Com muito esforço consegui subir três vagões atrás do meu, para a alegria da torcida das pessoas do trem, que queriam que eu conseguisse, e decepcionando a risonha platéia do outro lado da plataforma, que provavelmente queria ver um ocidental escorregar no cocô.

Sabe aquela coisa de você só dar valor a uma coisa depois que a perde? Aquele trem errado era minha casa, meu porto seguro. Sentei esbaforido e resoluto: iríamos até Amritsar e resolveríamos tudo lá. Se desse tempo até tentaríamos conhecer um pouco da cidade. Resolvi relaxar e esquecer temporariamente planos e programações.

Depois do inferno, tudo parece agradável e reconfortante. O Lonely planet se transformou num grande companheiro e fiquei muito contente por estar indo para Amritsar. O melhor a fazer era chegar lá e depois se preocupar com o problema. Qualquer coisa eu pegava um avião para chegar a tempo. Na pior das hipóteses a minha mulher chegaria sozinha em Mumbai, o que seria horrível, mas não a pior coisa do mundo, era só ela ir para um bom hotel, andar apenas de táxi e ir para o norte de avião me encontrar. Uma mulher forte como ela compreenderia a situação e daria um jeito de resolver o problema, apesar das dificuldades de se deslocar na Índia. No conforto desse pensamento de cunho quase "entreguista", relaxei pelo resto da viagem, curtindo a idéia de ir para Amritsar. Acho que relaxei tanto, que o rapaz que viajava do meu lado, entrou no clima e inesperadamente deitou no meu colo. Deixei, pois isso é comum entre eles e não tem maldade ou conotação sexual nenhuma. Só não fiz cafuné, pois seria um paradoxo acariciar a cabeça de um indiano depois de querer tanto arrancar uma . Fui até o final da viagem nesse clima de "love,love,love", mas cheguei a conclusão, que depois dessa viagem seria muito difícil escrever novamente sobre ahimsa, a não-violência, pois soaria de forma muito hipócrita.


Damião capturou o momento de paz

p.s: Muitos devem estar pensando que fiquei doido e virei um cão raivoso. Quem já se arriscou a viajar para a Índia totalmente fora dos esquemas das agências de turismo, misturado com o povão, e ficando fora da segurança dos ashrams, há de se solidarizar e compreender as fraquezas humanas. E certamente esta não foi a única e nem a vez em que fiquei mais furioso, mas isso é uma outra história.