sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sobre tetos de estrelas

Quando meu irmão se tornou adolescente ele virou meu companheiro de dormidas ao ar livre . Já fazem alguns anos que temos colecionado noites gloriosas sob o manto estrelado da noite.

Não sei de onde surgiu essa idéia, mas me lembro desde muito cedo, dessa coisa de pular a janela no meio de uma noite insone e me acomodar com uma coberta no quintal, no meio do gramado ou no jardim. A sensação de inquietação passava com o ar frio da noite e o barulho dos grilos e, após ficar de vigília para assistir as estrelas cadentes, eu dormia tranquilo até de manhã cedo, acordando a tempo de pular a janela de volta antes que meus pais acordassem.

Decerto que estas experiências por vezes podem ser mais cansativas do que a boa e tradicional dormida sobre os colchões e entre paredes. Mas o desconfortável para o corpo pode ser gratificante ao espírito, e isso suplanta qualquer cansaço físico.

Os anos foram passando e o hábito se enraizando. Montanhas, cachoeiras, matas e praias desertas. Acostumar-se a dormir ao relento trás uma sensação de liberdade e uma independência de inúmeras situações. Você não depende de nenhuma estrutura humana, não depende de pousada, restaurante ou coisa que o valha para pernoitar em qualquer lugar que esteja visitando. Com isso, tive (e tivemos, quando estava acompanhado) a chance de dormir e explorar diversos lugares que outras pessoas não tiveram. Parques nacionais com áreas vetadas, cachoeiras em terras particulares de fazendas e lugares que se tornavam inacessíveis pela distância, inóspitos para se passar a noite, ou proibidos de acampar. Todos se tornavam acessíveis pela adaptabilidade de se dormir em qualquer lugar. E o melhor é que esse "qualquer lugar"eram sempre lugares especiais que podíamos desfrutar sem outras presenças humanas.

Quando era adolescente, usava o saco de dormir, o que abdiquei depois por achar mais simples levar uma coberta e agasalho. Não me lembro de nenhum resfriado, de uma situação de medo grave, ou mesmo uma picada alarmante de inseto. Mas recordo-me de dezenas de luares incríveis, rios de estrelas, cantos estranhos de pássaros noturnos e o movimento das criaturas da noite. Lembro que algumas das idéias e percepções mais incríveis que tive na vida foram exatamente nesses momentos de banhos de céu. Lembro da sensação exultante de estar conectado ao universo, simplesmente por estar olhando e prestando atenção, interligado com uma parcela visível da grandeza do cosmos no céu noturno.

Por vários lugares onde estive em minha vida, se havia uma natureza ao redor que valesse a pena, acabava dando um jeito de dormir ao ar livre. Quando pensei na viagem para a Índia, cheguei a especular várias hipóteses, dormir nas cavernas de Ajanta e Ellora - mas temia que os guardas do parque nos descobrissem a noite - dormir numa região himalaica - mas pensava no frio intolerável - dormir num parque nacional (conheci um ucraniano louco que dormiu na selva) -mas ficava com medo de tigres e najas. Até mesmo em sadhus loucos que poderiam me atacar a noite eu especulei. No fim das contas, por vários temores de um país desconhecido, fui para a Índia sem disposição para acampar com barraca, quem diria sem nenhuma.

Damião foi antes que a gente para a Índia. Foi despreparado, pois decidiu de última hora. Viajou com pouco dinheiro, pois eu levaria o seu dinheiro mais tarde (já que receberia para ele um acerto atrasado de seu trabalho) que por sua vez correspondia a quase todo o dinheiro que ele teria para a permanência no exterior. Não quis levar dinheiro emprestado, não quis adiantamento. Teimoso, quis se virar com pouco. E assim foi para a Índia, decidido a se virar. Sem falar inglês direito, sem conhecer costumes, sem manuais, guias ou ajudantes. Resolveu me esperar em Pune, onde eu chegaria para estudar. Não gostou da cidade, nem das pessoas, foi então para Lonavla, cidade menor no caminho, onde também não deu muito certo, não gostou da cidade, dos hotéis e nem do ashram. Pouca satisfação, dificuldade de adaptação, tendo que defender seu pouco dinheiro da avidez dos indianos, resolveu ir para as montanhas ao redor da cidadezinha, tomando uma decisão que provavelmente eu não tivesse coragem de tomar se estivesse sozinho na mesma situação.

E assim foi para o mato. Comprou uns tecidos, corda e linha forte, farinha de trigo e manteiga. Guardou sua mochila com um indiano gente boa e foi para a montanha dormir com os macacos selvagens. Costurou uma rede comprida para dormir e filtrava a água de um riachinho cheio de musgo com o tecido da blusa. De noite fazia chapatis em cima de uma pedra no fogo e comia com manteiga. Com exceção de umas frutas que comprou quando foi uma vez para a cidade para me escrever, passou todo esse período à base de pão e água.

Nesse lugar passou quinze dias me esperando, com a companhia dos macacos ariscos e de um céu maravilhoso. De dia via o sol nascendo no platô ao som da passarada, caminhava bastante explorando o lugar e presenciava o sol se pondo. Sombra só havia nas "grutas" que os arbustos formavam, lembrando iglus verdes ou casinhas de caramanchões. Numa dessas bem grande ele armou o "acampamento". Não levou nem um livro, nem instrumentos para tocar, nenhum aparelho de música, só uma caderneta de anotações. Condições que poderiam deixar louca ou entediada qualquer pessoa mais irrequieta. Quando cheguei na montanha, com as indicações que ele me passou por e-mail, encontrei ele mais magro, mais queimado de sol e mais feliz que no seus últimos tempos vivendo na cidade.

Lá passei dois dias muito felizes também, mas não tive disposição de dormir no chão. Preferi a outra rede que ele costurou para mim.


"O sonho acabou, quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou" Gilberto Gil