quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Damião na terra dos peludos


Sempre adorei os clássicos (hoje considerados) infantis em que os personagens são levados para algum tipo de lugar, reino encantado ou mágico, como "Alice no país das maravilhas", "Alice no reino dos espelhos", ambos de Lewis Carroll, ou então "As viagens de Gulliver", de Jonathan Swift. Adorava filmes onde os personagens fossem inesperadamente para um lugar desconhecido e exótico, mas sempre em situações que fugiam ao seu próprio controle ou escolha, como no "O mágico de Oz", "Horizonte perdido" ou a ficção "O planeta dos macacos" de 1968.


Chegamos à Amritsar umas dez horas da noite e já compramos passagem no primeiro trem disponível para Haridwar, no dia seguinte à noite. Logo percebemos que estávamos num lugar estranho, bem diferente. A estação era muito mais limpa que todas as outras e, de forma surreal, estava completamente vazia, quer dizer, não tinha ninguém se preparando para dormir no chão, ninguém na fila e, sendo assim, ninguém para furar a fila ( acho que a maior piada que existe é esse termo "fila indiana", que deve fazer parte do passado glorioso da Índia pois, hoje em dia, isso é quase impossível de se ver ). Ainda mais inusitado era a mulher do guichê falando em inglês bem explicado, compreensível e com a maior boa vontade do mundo. Empenhada em nos ajudar com o nosso objetivo de chegar ao nosso destino o mais rápido possível, ela checou todas as possibilidades de ida via trem e ainda via ônibus, conversando com outras pessoas de dentro do guichê. Parecia um sonho, ou um filme de comédia, tamanho o contraste com o que tínhamos presenciado até então.

Por temer a fugacidade daquela sensação de paz que inacreditavelmente consegui vivenciar em uma estação ferroviária na Índia, disse ao meu irmão que seria melhor ele enfrentar o enxame dos motoristas de rick shaw. Tinha ficado bem estressado com as pessoas na viagem e não desejava me irritar novamente. Dei-lhe inclusive a idéia de irmos a pé até o hotel (coisa que fizemos várias vezes durante a viagem, para a perplexidade de muitos motoristas de táxi e rick-shaws que acham sempre que os gringos estão em suas mãos), desvinculando-nos da dependência dos veículos e do possível stress que a contratação desse serviço pode gerar. E foi o que decidimos, mas ao sair da estação, outro choque: além dos condutores não terem insistido muito para nos levar, um simpático senhor nos ofereceu, quando estávamos a uns dois quarteirões de distância da estação, que pegássemos o seu rick-shaw, pois nos levaria por apenas dez rúpias, segundo ele o preço justo até o hotel (por uma coincidência, o único taxista que, em outra ocasião, vi fazer isso na Índia foi exatamente um sikh em Mumbai, que inclusive não aceitou ficar com o troco que lhe oferecemos). Diante da gentileza e honestidade do senhor, subimos no rick-shaw e fomos para o hotel. Eu estava tão comportado que tinha até me rendido ao guia lonely planet e aceitado a sugestão de um hotel, uma charmosa construção bem antiga, transformada em guest-house, que nos remeteu a Paraty ou Alcântara com suas pousadas coloniais com o pé -direito muito elevado.

Ficamos até tarde no jardim do pátio superior da pousada vendo a lua cheia, a segunda que até então tínhamos tido a oportunidade de vislumbrar na Índia, planejando o dia seguinte e os próximos, que seriam muito atribulados, já que eu chegaria em Rishikesh e teria apenas um dia para olhar as instalações e ir novamente para Mumbai.


No dia seguinte fomos caminhando até o complexo de templos, pois queríamos conhecer a cidade. Obviamente que não era imaculada, mas com certeza a cidade mais limpa que eu já tinha visto na Índia e, para aumentar nossa estranheza, as pessoas deram várias indicações corretas a respeito do caminho.









Fico pensando na exultante sensação de alegria e descoberta que teve o patinho feio quando descobriu que não era um pato estropiado, mas sim um lindo cisne. Não posso dizer o mesmo do meu irmão, pois lindo, ao menos por fora, é algo que ele não é. Mas jamais vou esquecer de seus olhos encantados observando a enorme massa de barbudos que avistamos ao chegar no complexo de templos dos sikhs. Acho que foi a maior concentração de pêlos que já vi na vida. E Damião finalmente percebeu que existe vida como a dele.

Os sikhs não cortam os cabelos e nem a barba, que muitas vezes fica presa, penteada para dentro do turbante. Pela primeira vez na vida meu irmão estava em um lugar onde as pessoas não olhavam com repúdio para sua enorme barba, que nem poderia mais ser considerada como uma aberração gigantesca, pois se tornava medíocre diante de outras barbas que mediam até o umbigo.



Depois de aguentar gozações durante todo o ano, ouvindo de mim que deveria fingir que não era meu irmão quando estivéssemos no avião de volta e no aeroporto - pensei na hipótese dele ser preso no aeroporto de Londres como suspeito de terrorista muçulmano - finalmente meu irmão recebia sorrisos de aprovação, finalmente ele via o brilho dos " dentes brancos do mundo" ( como diz a canção).

E não eram poucos sorrisos, pois provavelmente pensando que ele era algum sikh estrangeiro, as pessoas o cumprimentavam animados com a saudação local. As crianças queriam tirar fotos com ele (eu sei que alguns vão dizer que as crianças indianas querem tirar fotos com todo mundo, mas nessa ocasião só queriam com ele, nunca me pediam). Damião virou uma espécie de astro de rock em Amritsar.

Num grupo de senhores (barbudos, lógico) disseram que a barba dele era linda, como a de um verdadeiro sikh, diferente da minha, feia e mirrada. Deram-lhe um enorme tecido e lhe ensinaram como amarrar o turbante. Convidaram-no para passar uns dias na cidade, na casa de um deles, professor da faculdade local e resolveram lhe batizar: "Now your good name is Sardar Damião Singh, because you look like a lion. Singh means lion". Sardar Damião Singh, e eu tenho que aguentar essa, agora a barba dele, tão perseguida outrora, lhe conferia prestígio. Dei uma desculpa e tirei logo meu irmão do meio deles antes que lhe arrumassem um casamento.

A quase nova família de meu irmão: dois tios, primo e sogro....


Descobrimos que aquele dia era muito especial para eles, pois era a comemoração do Guru Parab, o nascimento de guru Nanak, fundador da religião e iriam sikhs de todo o país para a comemoração. Estranhamos muito o fato de não encontrar nenhum gringo durante todo o dia. Só à noite que vimos um casal. Realmente Amritsar não está nas rotas tradicionais de turismo da Índia. O mais comum é que as pessoas passem por lá indo para Dharamsalla, o que é uma pena, pois o complexo de templos e o contato humano e cultural são especiais.



Antes de entrarmos no complexo, passamos por um "riachinho" artificial que serve para limpar os pés. Então chegamos a um lago, circundado por várias construções antigas. No centro do lago está o templo de ouro, uma gurdwara toda coberta com placas de ouro e partes maciças em alguns ornamentos. O templo Harimandir Sahib foi construído aproximadamente em 1600 e é o mais belo que existe nesse estilo arquitetônico. Como o lago é muito plácido, em alguns momentos de ausência de brisa, você pode ver a imagem do templo refletida na água, quase como num espelho.



Em volta do lago existem algumas árvores sagradas muito antigas, onde vivem - sem exagero - milhares de passarinhos, que produzem um som quase ensurdecedor para quem está em baixo, nos horários do amanhecer e entardecer. O piso em volta do lago é todo de mármore, com lindos desenhos e mosaicos em vários trechos. O lago é sagrado, seu nome é amritsarovar, que quer dizer lago de néctar e deu o nome à cidade. Peregrinos e sikhs da cidade tomam banhos em ocasiões especiais para purificar-se. Não tiramos fotos por percebermos um desconforto deles em serem fotografados nesse momento, talvez pelo vestuário, apenas uma espécie de tanga de pano, ou simplesmente por tratar-se de um momento especial, de concentração.



Pegamos a ponte que leva até o templo, nos unindo à massa humana que, enquanto caminhava lentamente, ia cantando baixinho, quase murmurando os mantras e cânticos que se espalhavam por todo o complexo por meio de caixas de som colocadas em vários pontos. Durante todo o dia se ouve música no templo, tocada por um grupo de músicos especiais que se revezam para que haja música do momento em que abre até tarde da noite, quando o templo é fechado. O som das pessoas cantando junto com os músicos provoca uma espécie de transe, que enreda e aprisiona nossa mente de uma forma incrível.





Como lá a esmagadora maioria das pessoas ainda se veste com trajes típicos (com exceção dos jovens), você tem a sensação por alguns momentos de estar dentro de um cenário ou em um conto das mil e uma noites, pois de certa forma a estética da arquitetura e das roupas com turbantes lembra um pouco o mundo árabe. Muitos se parecem mais com gente do oriente médio do que com os tipos raciais mais comum entre os indianos.












 Depois de passar algumas horas lá, têm-se a impressão de estar no passado, especialmente pelo fato de não haver comércio, veículos e basicamente não se ver roupas que lembrem a civilização moderna. Além disso as pessoas evitam utilizar os insuportáveis celulares, o que ajuda a criar ainda mais esta sensação.

Mas talvez o aspecto mais interessante desse local, seja o fato de você poder participar ativamente do dia a dia do templo. Você pode ficar o tempo que quiser no interior, não há restrições como em muitos templos hindus e muçulmanos. A idéia que parece imperar é : encontre seu lugar e sente para meditar. Gastamos boa parte do dia sentados dentro do templo, observando o interior magnífico (único lugarque não pode ser fotografado) e meditando no som maravilhoso. Ficamos impressionados com a qualidade dos músicos e com o fato de parecerem estátuas, usando roupas meticulosamente iguais e quase não se movendo para tocar. Tinham roupas tão alvas que refletiam a luz, usavam turbantes e barbas impecáveis, lembrando mesmo bonecos de cera que tinham tomado vida, como num cenário do museu de madame Tussaud.

Pode-se também participar de alguma atividade na cozinha, limpando, descascando e cortando legumes, ajudando a cozinhar o alimento que será oferecido para milhares de pessoas duas vezes, todos os dias. A cozinha nunca pára e é incrível pois eles servem diariamente a milhares de pessoas de todas as religiões, que também podem dormir dentro do complexo, contanto que não sujem. É tudo muito limpo, nem parece a Índia. Aliás, Amritsar, com sua organização e limpeza, me pareceu de forma geral como um "tapa de luvas de pelica" na face da Índia hindu. Apesar de que fiquei muito pouco tempo na cidade, e sendo assim, talvez não tenha fatos suficientes para fazer um profundo e justo julgamento, e também pelo fato de que a cidade não é tão populosa, com apenas um milhão de habitantes.

Apenas uma vez um molequinho me pediu dinheiro, nas cercanias do complexo, pelo que foi logo censurado muito gentilmente por um senhor. Perguntei-lhe o que dissera ao menino e ele respondeu "que se ele estivesse com fome, que fosse para o templo comer, mas que não pedisse esmolas". E o que realmente mais me espantou foi a gentileza das pessoas. Em nenhum lugar da Índia eu vi isso de forma tão clara e sincera. Era sempre assim: olhávamos um sujeito ou algum guarda de longe, e achávamos a pessoa com cara de mau, cara de Bin-laden, de Aiatolá Khomeini, de milícia talibã. Mas quando nos aproximávamos para conversar ou pedir explicações sobre algo, toda a má impressão se esvanecia e a doçura do olhar e da voz no deixava admirados. Era como se estivéssemos numa cidade de srs. Narindas (nosso amigo sikh). Era como se eles tivessem uma maquininha de copiar para produzir em série.

Por fora o olhar de um mulá iraniano, por dentro doce como gulab jamum

Depois das deliciosas refeições, ficávamos estatelados no jardim que fica perto da gigantesca cozinha comunitária, olhando os passarinhos. Achei que finalmente estava tendo umas férias depois de tantos perrengues e desvarios.

Passamos o dia inteiro ao redor do templo, da hora que acordamos até a hora de fechar. À noite houve uma invasão inacreditável de pessoas, ficando difícil até de andar. Em uma aglomeração, vi uma cena que até hoje me questiono se foi real ou imaginação. Olhando por cima dos ombros das pessoas, vi uma espécie de altar e, se meus olhos não estavam desfocados, as pessoas estavam cultuando uma gigantesca barba colocada em cima da mesa (apenas a barba, sem o dono, como uma "peruca de barba"). Meu irmão perguntou o que eu estava vendo, já que estava melhor posicionado, e disse-lhe que não era nada demais. "Pelas barbas do profeta", fiquei com medo dele querer entrar naquela sala também e render graças às barbas dos santos e de lá não mais sair. Vou perguntar ao sr. Narinda se o que vi foi o que vi mesmo.

Descansamos muito nesse lugar, nos preparando para a viagem e, como é normal na nossa família, perdemos a hora conversando com uns paquistaneses, tendo que sair correndo como loucos para pegar as coisas e o trem para Haridwar. Foi um dia bem inusitado, diferente de todos os outros que tínhamos tido na viagem. Foi como se tivéssemos sido transportados para um conto de fadas barbudas.

Damião, aparentemente envolvido por um sentimento patriótico, disse querer muito voltar para conhecer mais a cidade, as pessoas e a cultura. Mas acho que no fundo ele queria mesmo era repetir a dose de liberdade e respeito por sua barba. Infelizmente não voltamos à cidade dos sikhs, e minha mulher e as crianças não conheceram essa encantadora terra dos peludos.