quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Encalços e Percalços, terceira parte


Desmistificando os medos, "desmedificando" a vida
Levar um bebezinho de três meses para um país desconhecido, mais precário economicamente, cheio de idiossincrasias culturais “estranhas” e mil problemas sociais, já era motivo suficiente para sentir insegurança, ser taxada de louca, irresponsável, negligente, imprudente, e todos os “(pré) conceitos” possíveis de se chegar por meio de um raciocínio até lógico e coerente, levando em consideração o padrão “comum” de pensamentos das pessoas.

E o que dizer sobre levar um bebê que nasceu com um “probleminha” no intestino grosso e que por isso passou por uma cirurgia nos primeiros dias de nascido?

Não quero louros por isso, e nem acho que é motivo para tal. Muito menos me importo com as críticas, senão não me exporia. O único motivo pelo qual abro mão de nossa privacidade, contando esse fato, é porque acho que uma experiência bem vivida por uns, pode ser bem aproveitada por outros. “Eu não sou besta pra tirar onda de herói”, não busco esse papel e nem me afinizo com esses personagens. Como disse Arnaud Rodrigues: “O herói é o cabra que não teve tempo de correr”.

Simples assim: sou uma mãe que passou por dificuldades comuns a muitas outras e com certeza muito menos que muitas outras, mas suficientes para algumas lágrimas, tensão e medo e, principalmente, muito conhecimento. Um verdadeiro “empurrão” em direção a Deus. Uma compreensão da realidade até então não explorada ou vivenciada. Um estreitamento na relação com o divino ou pelo menos no que acredito ser divino.

E foi no embalo dessa sintonia, confiando nesse vínculo que tomamos decisões e direcionamentos que tantas vezes contrariaram as expectativas de todo um “mundo” a nossa volta. E como os frutos foram positivos, só posso dizer que foram acertadas as escolhas, apesar de muitos preferirem chamar de “sorte”. Ainda hoje escutamos a frase: “Tiveram sorte, mas e se...” Não! Os tantos “ses” que escutamos não aconteceram. E não acredito que somos pessoas que têm “sorte” a mais que qualquer outra. Apenas não baseamos nossas decisões no “bom senso” comum, com seus milhões de “ses” e “poréns” empreguinados de medo ou comodismo.

“Não vai”, “não faz”, “não deve”, “não pode”! “Está muito frio”, “muito quente”, “é perigoso”, “não tem jeito”...

Quantas vezes escutamos “recomendações” desse tipo, algumas por mero zelo de pessoas que nos prezam, outras por pessoas que, muitas vezes sem querer e sem saber, tentam nos acorrentar em suas próprias “prisões”.

São tantos os momentos em que recebemos os famosos “baldes de água fria”, que já consigo com um mínimo de atenção prever os “arremessos” antes de acontecerem, às vezes até a tempo de abrir o guarda-chuva e evitar ficar encharcado daquela energia que já me é muito familiar: a energia contagiosa do medo.

Não estou falando sobre esta viagem especificamente ou destes ouvintes que ora vos falam, mas de todos os “viajantes” que em momentos da vida resolvem mudar a rota, investir no seu próprio jeito de fazer, criar uma nova forma.

Mas, nesta viagem propriamente, teve um episódio que foi um exemplo clássico de como as pessoas podem querer te desanimar com seus próprios temores . Decidimos fazer um treking no Nepal por vias independentes da máfia das agências de turismo. Resolvemos ir para o Mustang Valley, um lugar além dos Himalayas, numa região vizinha ao Tibet. Mas a única informação que conseguíamos obter das pessoas (inclusive nos famosos guias como lonely planet e etc) eram as possibilidades através de caminhada com guias ou por avião até Jomsom, uma vila com alguma infra-estrutura antes da travessia pela “abertura” existente na cadeia de picos. Nenhuma das duas formas era aceitável para nós. Não iríamos nunca de avião perdendo toda a paisagem geográfica e humana, todas as nuanças do caminho. E duas crianças pequenas eram um empecilho concreto na opção de tão longa caminhada (14 dias só para chegar em Jomsom e nossa vontade era de ir mais além).

Não teria outro jeito, não existe um transporte via terra? Não, não, não, eram sincronizadas as respostas e incisivos os funcionários das agências. Mas não era possível aceitar esse diagnóstico fatalista. Como então se deslocavam as pessoas daquele lugar? Deveria haver um transporte. E acabamos descobrindo, depois de muito procurar junto às pessoas locais, que havia sim uma rota via terra, através de um micro-ônibus adaptado e jeeps, por uma estrada mais ou menos recém aberta. Depois fomos descobrir que o conceito de estrada para eles é bem distante do que aqui consideramos uma via acessível por transportes comuns. Amontoados de pedras, estradas muito estreitas à beira de precipícios, horas e horas de poeira e solavancos de desafiar qualquer sistema nervoso.


Uma francesa amiga nossa (que fazia parte do pequeno grupo de amigos que decidiram aderir à audaciosa aventura), em um momento de desespero, se levantou do banco e gritou ao motorista que parasse pois ela iria prosseguir à pé. Imagine um lugar, a kilômetros de qualquer outro lugar, no meio do nada, no meio da noite, um frio insuportável, isso certamente não era uma boa escolha. Nesse caso sim, um balde de água fria era apropriado para esfriar os ânimos e agüentar o tranco.


A respeito da dificuldade da trajetória, nós já tínhamos sido previamente preparados e excessivamente“alarmados”pela funcionária do órgão do governo responsável por emitir as permissões para entrar no santuário dos anapurnas e na região do reino do Mustang. Mais uma vez aquela mesma situação: indo para um lugar desconhecido, munidos apenas de informações escassas que por si só não são garantia de nada. De novo o prenúncio da “chuva”, aquela energia familiar e em seguida a tempestade de nãos. A moça arregalava os olhos e mostrava os dentes, repetindo insistentemente o mesmo refrão de terror: “Não vá com seus filhos!”. A cada quatro palavras que ela dizia, voltava a repetir a frase. Já tínhamos mudado de assunto, pagado as taxas e com as carteirinhas na mão e lá estava ela com o mesmo repertório: “Não Vai! Seus filhos vão adoecer, tem muita poeira na estrada, muito vento!” Verdadeira “assombra- a- ação” esta mulher, que graças a Deus não tinha poder para me impedir de ir, senão com certeza o faria!Essa ganhou o título de “São Pedro do ano”, Bin Laden, terrorista! Mas totalmente compreensível. Se estivesse no lugar dela também colocaria todos os contras, embora sem tanta ênfase e repetição. Mas ela estava certa em todas as informações que nos forneceu.

Cris e Flora tomando uma "cerva" tibetana numa parada no meio do caminho (brincadeira, era um delicioso chá)

Poeira demais, frio demais, vento demais. Para isso usamos casacos, panos úmidos para superar a falta de janelas nos “ônibus” e atenuar a poeira para as crianças, horários limitados para elas saírem dos quartos. Sendo assim, dimensionando e contornando as dificuldades, o que resta é muito maior que qualquer poeira, frio ou vento. É experiência rica demais!

Difícil ou não, vimos que era possível chegar. E como valeu a pena chegar!

E a conclusão a que chego diante de tudo, é a mesma de Caetano:

“É preciso estar atento e forte! Não temos tempo de
temer a morte!...
Atenção! Tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso!”

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